“A ARTE DA POESIA” 14 MARÇO 13:30/14:30H
Escrito por Jorge Gaspar em Março 14, 2020
Emissão 19
No âmbito da divulgação cultural na NTR, celebra-se e vive-se POESIA, numa conversa sobre Poesia e seus Autores nos dias de hoje.
Numa conversa pulsando Poesia, a presença de Alberto Pereira, conversando acerca do seu livro “Poemas com Alzheimer“.
Partindo de 16 questões da obra póstuma de Pablo Neruda, Livro das Perguntas, desenha-se um hospício onde o mundo possa ficar a salvo da cegueira. Infância, política, amor, doença, vício e morte deambulam para encontrarem um precipício para a rotina. O objetivo deste livro é que cada um possa dialogar com o batimento cardíaco da sua tempestade.
Poema IX (Livro – Poemas com Alzheimer)
Nunca digas amor,
sem saberes que os vermes
nascem na ressaca do paraíso.
O tempo tem essa essência de falésia,
fazer do céu
o ígneo chicote para as lágrimas.
Já imaginaste o tecto a descer os degraus,
a entrar-te pela cidade
com pálpebras esmagadas?
O cume a ser o solo?
Pisas então essa palavra
que dizia alucinações aos órgãos.
Muros como se fossem as teclas magnólias.
Escreveste com a língua tantas coisas,
imitaste com ela as ondas.
O mar cabia na boca sem margens.
Às vezes,
largas planícies demoravam fábulas na saliva.
Os beijos realizavam as aves.
E depois dos beijos,
as facas prometiam dias capazes de palácios,
fidelidade sem vento,
ouro com lisura infantil.
O ferrão é o testamento tardio do mel.
Os corpos continuam,
ondas que vão e vêm numa maré magnífica.
Sol estéril, adrenalina furibunda,
gangrena doce.
Amadurece o petróleo, combustão do tempo.
O futuro recua.
Amores com magnitude desavinda,
pétalas em contramão,
terrores deitados, mas com subtileza.
Abrem-se clarabóias na cabeça
para que todos saibam,
pela frente se mostra a traição.
A testa, casa do segredo jubilado.
O poema regurgitando
feridas altas como prédios.
A boca,
fábrica de ódio em infinito trabalho.
O corpo é agora moldura desmedida.
Retratos com espinhos,
assoalhadas para a solidão,
mentiras com um espanto terrível.
A Primavera são revólveres que floriram.
E como uma das referências na poesia de Alberto Pereira, Herberto Helder. Considerado o “maior poeta português da segunda metade do século XX”, e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.
Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
(Herberto Helder)