Alice Brito, advogada, escritora e cronista, natural de Setúbal, tem já três obras publicadas: “As Mulheres da Fonte Nova” (2012), “O Dia em que Estaline Encontrou Picasso na Biblioteca” (2015) e, mais recentemente, “A Noite Passada” (Planeta, 2019).
Neste último, a autora narra a história de Amélia, uma jovem mulher de famílias respeitáveis, que põe o futuro e a reputação a perder durante os anos cinquenta do século XX quando é “engravidada” por um agente da PIDE que, apesar de ter modos delicados e sedutores, será mais tarde capaz das maiores atrocidades. “Engravidada” e abandonada, a protagonista desta história acaba por casar com um (distinto) colega de trabalho (Joaquim), mudando-se de Lisboa para Setúbal (cidade que é outra protagonista importante deste romance) para uma vida recatada e rotineira, onde pensa estar segura e longe do pai do seu filho (Toninho).
O inferno, porém, bate-lhe à porta a espaços longos e por isso mesmo mais mortificantes, enquanto o leitor vai acompanhando a fotografia social, humana, politica e de costumes -constantemente policiados – num País que se debate, medroso e paralelamente ousado, com a agonia da ditadura. O livro está repleto de histórias de heróis e vilões anónimos (como é apanágio dos seres humanos) e pejado de preconceitos e modas arrojadas “à época”, sempre com a autora a descrever comportamentos com os quais muitos leitores se identificarão, sempre a medir e a tomar o pulso ao sonho da Liberdade.
“A Noite Passada” é um livro escrito de forma fluída e muito eloquente, que nos transporta para os anos sessenta e setenta prévios ao fim do Estado Novo – com um excelente trabalho de reconstrução histórica daquela época -, socorrendo-se de uma escrita acutilante que não foge às palavras mais duras e ao grande calão, com laivos de um desbragamento bem controlado, que lhe confere uma grande originalidade no panorama da literatura portuguesa actual.
A autora imprime também um traço de genialidade ao abrir o livro com três folhas escritas que difíceis de assimilar na altura e que, à medida que a trama avança, irão completar os puzzles das duas histórias narradas em simultâneo (que se distinguem pelo facto de a história presente estar em itálico). O mistério, esse, está nesta forma de escrita mesclada que acompanha o leitor durante todo o livro. Quem são estas personagens da história actual, apenas levemente delineadas, e que relação têm com as personagens da história principal? A revelação é eloquentemente transportada para as últimas páginas do livro, proporcionando o que a boa literatura deve oferecer ao seu leitor: surpresa e entendimento.
Como a política condiciona toda a vida pessoal.
Escrever é fixar o tempo que vivemos. Esta frase foi glosada duzentas vezes por escritores de todos os tempos. A ideia de que escrever um romance serve quase sempre para falar sobre o tempo em que se vive concretiza-se tanto na ficção científica – onde tantas vezes se exploram as inquietações do mundo de hoje, traduzidas em realidades virtuais mais avançadas que nos permitem pensar em cenários radicais – como nas tramas mais realistas.
‘A noite passada’ de Alice Brito é um desses textos que se assume como tempo cristalizado para memória futura. Não nos esqueçamos dos dias que vivemos em 2019 para perceber a necessidade de um livro de época, passado entre os últimos anos da ditadura de Salazar e o alvoroço dos primeiros tempos da democracia. Não nos esqueçamos também da cidade cenário quase elevada a personagem principal onde tudo acontece, Setúbal, do que ela é hoje e do que ela foi. Não nos esqueçamos de quem somos hoje as mulheres da classe média e de como somos, do que hoje podemos escolher ser e fazer.
O tempo em que a ação acontece contagia as personagens. Esta é a constatação mais evidente deste romance. Como se o livro invertesse o axioma: o pessoal é político. Neste texto, o político é pessoal, invade a vida das personagens, a forma como elas se relacionam e a sua própria autoconsciência.
‘A noite passada’ é a saga de uma família que atravessa os tempos mais sórdidos da história portuguesa e que se vê inerme sempre e quando a polícia política resolve intervir naquelas vidas privadas. Esta família é normal, sem pretensões de construir um mundo melhor ou fazer qualquer tipo de alteração ao sistema vigente, sem nenhuma resistência social ou política, mas que também sofre despotismo permitido à época aos agentes da autoridade.
Alice Brito conta neste livro como uma mulher adulta, com formação média e empregada num escritório, fica refém do homem por quem se apaixona. Quando engravida depois de uma série de encontros ilícitos – ela é solteira, o que configura um comportamento punível no código civil de 1966, no sentido em que a não virgindade da nubente era razão para anular o casamento, até 1977 – vê-se a braços com uma gravidez indesejada que o amante não quer que prossiga. Abandonada por ele, confronta-o e ele afirma à luz do dia que é um PIDE, que é casado e que não quer mais nada com ela. A ameaça é clara: poderá a usar as armas habituais do Estado contra ela.
Amélia, a mulher, acaba por conseguir casar com um colega de trabalho, o que lhe resolve o escândalo e, para dissipar todas as suspeitas possíveis, o casal muda-se para Setúbal que, naquela época – ainda sem comboios nem autoestradas – é uma cidade com vida própria afastada da capital.
O que faz a mulher de um homem que socialmente a salva? Contenta-se e é a mais submissa das mulheres. O que faz um homem que salva uma mulher? Exerce o seu poder, mesmo que a sua índole seja boa, não deixando de relembrar quando encontra necessário o tipo de relação que pode exigir a Amélia e ao filho (mesmo se deste também se escondeu a paternidade biológica): na gratidão dela encontrará sustento esta relação.
O papel da política nas relações conjugais vê-se noutros casais: os vizinhos que chegam ao bairro pequeno burguês onde Amélia reside como o marido e o filho. Ela é a encarnação da pobreza, sempre calada, envergonhada, vestida de preto e ele a concretização do pequeno ditador: um gordo seboso que a usa para as aparências necessariamente heterossexuais sem nenhum gesto de cuidado para com ela, que está seguro que o pouco dinheiro que tem serve perfeitamente para a comprar, que a maldade que lhe inflige a serve o propósito do apoucamento do que resta daquela mulher, dando largas à sua própria maldade.
Dar largas à própria maldade é de resto o que, quando a vida decorre pacata, o Pide parece querer fazer: primeiro com mensagens anónimas e vidros partidos, depois com pancadas de meia-noite. Ele paira como um fantasma aterrorizador sobre aquela família e a sua ação direta, com os instrumentos que o Estado lhe põe ao dispor, condicionam a saúde e as relações dos membros daquela família.
No entanto, e apesar do fantasma durar até ao fim da história, a progressiva perda de poder e a sensação de que o fim da ditadura está próximo vão contaminando as relações interpessoais. Amélia ganha poder dentro do seio familiar, tira a carta de condução, a vizinha de negro aprende a ler e torna-se emancipada na sequência do suicídio do marido, Encarnação, a empregada de Amélia, impõe-se na luta pela habitação durante o Verão Quente.
A revolução que se vive nas ruas e quartéis de Setúbal onde, por momentos, o cantor Zeca Afonso aparece como personagem, é também o tempo da paixão, não apenas política, mas da paixão ardente, carnal entre as personagens mais jovens. Como se o tempo político não fosse outra coisa do que aquilo que contagia o ser mais íntimo destas personagens. A relação estabelecida neste grande romance de 2019 é incontornável: o político é pessoal.
(Carla Macedo)
Verdade, precisa-se!