“A PROPÓSITO DE ELEIÇÕES”

Alice Vieira

A primeira vez que o meu filho votou foi para umas eleições autárquicas,
já lá vão mais de 30 anos.
Ele tinha um amigo inseparável : gostavam das mesmas músicas, eram
sócios do mesmo clube de futebol, disputavam partidas de xadrez todos
os sábados , iam às mesmas discotecas, estavam no mesmo curso da
faculdade.
Mas, nessas primeiras eleições, pela primeira vez não estavam de acordo.
Um dizia que, para cara de pau, bastava-lhe o padrasto; o outro
argumentava que, para palhaços, preferia ir ao Coliseu.
Pela primeira vez, em 18 anos, não podiam partilhar incertezas,
esperanças, sonhos, otimismos ou pessimismos.
No dia das eleições os telefones de ambos estiveram anormalmente
silenciosos.
Quando, às sete e um minuto, a televisão avançou com as previsões, o
meu filho sentiu-se estourar de felicidade e teve o impulso normal de
querer partilhar a sua alegria com o amigo. Ainda pegou no telefone mas
desistiu da ideia.
Ao cair da noite estava eufórico, já me tinha pedido o carro para ir festejar
para a rua—mas tocou o telefone. Precipitou-se. Tinha a certeza que era
o amigo.
Era.
Uma voz hesitante, como se quisesse pedir qualquer coisa e lhe faltasse
coragem.

Mas o meu filho estava sem paciência para hesitações : de bandeira na
mão, queria ir para a rua gozar a sua primeira festa de cidadão eleitor.
–Vá lá, pá, despacha-te, o que é que tu queres?
–Eu queria…eu queria… Ó pá, eu queria…
–Desembucha! Querias o quê?
Pela janela ouviam-se os barulhos das buzinas, das vozes.
Até que o outro finalmente se decidiu
Esquecendo as semanas de costas voltadas, os silêncios e as caras de pau,
desabafa:
–Ó pá, deixa-me ir buzinar contigo!!
Tenho a certeza que é por isso que ainda hoje continuam inseparáveis.