ANDRÉ OSÓRIO “OBSERVAÇÃO DA GRAVIDADE” CHANCELA GUERRA & PAZ
Escrito por Jorge Gaspar em Outubro 21, 2020
O LIVRO DO DIA NTR.
Observação da Gravidade procura uma ideia de biografia construída, disseminada nas três secções que constituem o livro. Através de um movimento concêntrico, do exterior para o interior, o próprio tempo faz-se espaço e a gravidade que o fixa, unidade e fragmento, dia e rotação. Existe uma busca de identidade por meio do seu reflexo, a simultaneidade entre o que se vê e o que devolve o olhar. Observação da Gravidade procura a matéria de que é constituído, o seu nome.
André Osório nasceu em Lisboa no ano de 1998. É estudante do último ano de licenciatura de Estudos Portugueses, na Universidade Nova de Lisboa- Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e, apesar de ainda não ter publicado livro em nome próprio, tem poesia publicada em revistas literárias como a Folhas, Letras & Outros Ofícios (Aveiro), a edição online da Porridge Magazine (Londres), a revista Apócrifa e a revista Lote (Lisboa), da qual é um dos directores e fundadores.
A “Home is so Sad”
Importa caber nos vestidos das casas,
a eles sempre voltamos.
Do later da memória, após o retrair das vasas,
o nome ressurge e reparamos
no ritmo do roubo, da noite às suas caças.
O lápis traça na ruína do tempo a palavra,
ronda o perímetro do linho
em busca de uma fenda pelo mar que lavra.
Vê aqui: os olhos prensados no caminho,
a água na panela e o azul amarrado. Este poço.
Passeio Nocturno
A gravilha pouco sabe da estrada,
do movimento de trás do vidro.
Firmo-a na distância da noite, no teu corpo nu,
para me aproximar dessa perda original
em que, como num qualquer fim-de-semana
atarefado, as carcaças ganham renovado vigor
pela planificação dos dias seguintes,
com os seus novos fatos de smoking.
Recuperam as horas pelo esquecimento,
a cinza da espera nos bolsos por abrir.
Os mesmos homens que criaram estas linhas
de ferro inventaram as mercadorias
e a moeda de troca,
o alcatrão sob o olhar atento dos faróis,
o reflexo como artefacto
do percurso, a viagem na geografia
dos mapas.
Se procurasse dizer-te que o teu corpo se move
na distância interior de um gesto,
decerto que, na certeza ponderada de um acto,
serrar-me-ias o trilho com os dentes.
AO ATRAVESSAR A PONTE
Ao atravessar a ponte, estarreci. A meio, um corpo jazia no eco da passagem, remetido para sempre a si. Deste lado, no âmago da fotografia, o morto não deixava traço de morte, antes de vida, com o molde perímetro da pele por dentro do corpo que perdi. As horas amanhecem agora o rio pelo olhar a desvanecer-se no cimento: as extremidades unem-se, no centro de mim.
Longas paisagens e pequenos fragmentos. Imagens que se projectam para o interior e pensamentos que, aparentemente simples, quase parecem conter uma vida inteira. Longas deambulações por sequências de gestos ligeiramente surreais e breves imagens surpreendentemente certeiras. É de um pouco de tudo isto – e mais – que é feita esta Observação da Gravidade.
Gravidade que não afecta apenas os corpos, mas também a mente. Não é propriamente fácil descrever este livro, até porque o seu ponto mais forte está no facto de gerar sobretudo impressões e sensações fortes, mais do que propriamente percepções racionais. E isto é em si mesmo uma surpresa, porque, se olharmos para os versos tal como eles são, parece haver uma firme base objectiva – paisagens, objectos, gestos – mas projectada para algo de diferente, de indefinível interioridade.
É o tipo de livro que dificilmente se defina, mas que deixa várias pegadas na memória.Talvez seja possível, apesar disso, olhar um pouco para a estrutura. E a estrutura é relativa. Há poemas de várias páginas e outros de apenas três versos. Poemas com ritmo definido e com a cadência do pensamento. Poemas com rima e sem ela. À imagem das paisagens relativamente reais, relativamente surreais que evoca, também a estrutura vagueia ao ritmo das sensações. E, assim sendo, há poemas mais longos, mas que parecem dispersar-se um pouco e, outros que contém tudo aquilo de que precisam nas suas escassas linhas. E, entre uns e outros, há todo um espectro de impressões e possibilidades.
É também um livro breve, o que, associado aos pontos comuns entre poemas, realça a sensação de união que liga as partes. Cada poema é um todo independente, mas o conjunto parece ter sido pensado como um todo coeso, ou pelo menos é essa a impressão que fica: a de uma totalidade que é maior do que a soma das suas partes.
Observação da Gravidade: de uma gravidade interior, possivelmente. E é esta gravidade interior, tão perto do mundo, mas traçada de uma forma tão singular, que torna esta leitura memorável. Difícil de descrever, é certo… mas marcante, sem dúvida.
INVENTÁRIO DE UM DESASSOSSEGO
Livro de estreia de André Osório, “Observação da gravidade” (Ed. Guerra e Paz, 2020) revela-nos um jovem autor que aos vinte e um anos impõe-se por uma plena maturidade criativa, num conjunto de poemas que nasce não apenas do olhar imerso num lirismo muito peculiar, mas também de uma prospecção metafísica do mundo.
Dividido em três seções — Gravuras, Observação da Gravidade e Museologia — os poemas cartografam múltiplos cenários, numa revisita àqueles sítios que são referências para a construção de sua personalidade e de sua criação literária. Espaço, tempo e memória conjugam-se num espectro simbiótico em que alinhava seu sentimento do mundo, a partir de uma aguçada sensibilidade.
Permeado por um lirismo nada exacerbado e uma reflexão sobre sua relação com os mundos que o cercam (o geográfico, o afetivo, o psicológico), o autor desnuda, como numa sequência de palimpsestos, as camadas de sua precoce, mas intensa experiência vivencial, sem desviar-se por um sentimentalismo vão.
Nas deambulações por universos e atmosferas que oferecem matéria e circunstância para uma poesia de mergulho em um presente repleto de passados ainda tão recentes, a infância e a adolescência são os grandes emuladores melancólicos de uma identidade que se quer resgatar. Como no poema “A apanha da conquilha”, a delicada escritura de André Osório remete-nos àquele sentimento já expresso por Carlos Drummond de Andrade — É o menino em nós/ ou fora de nós/ recolhendo o mito — e que habita o seu inconsciente familiar, social e humano e projeta-se com imensa carga sensorial, metafórica e onírica, culminando num sutil inventário existencial.
Entre poemas mais longos e versos que optam pela economia de meios, a poesia de André Osório se constrói a partir de imagens do cotidiano e transita por um imaginário que incorpora também influências de outros campos artísticos (como a música, o cinema, as artes plásticas). Diáfana, sua linguagem bebe em várias fontes estéticas, esparrama-se por uma rica intertextualidade, símbolos evidentes de seu repertório de leituras tanto literárias quanto do mundo, ao mesmo tempo em que nota-se um equilíbrio entre forma e conteúdo, a presença de harmonia e ritmo na híbrida construção da obra, por todos os ângulos, estruturado com rigor, densidade temática e cristalinidade verbal.
“Observação da gravidade” é uma radiografia dos escaninhos domésticos, um belvedere de multifacéticas miragens, de onde é pressionado o gatilho da memória e se inscreve uma identidade pessoal e por ela escreve-se uma biografia coletiva a partir dos mundos que se formaram ou agora são reinventados em chave de catarse. Osório mira-se pelo “olho de uma casa/ que olha para dentro”, espaço mí(s)tico, lúdico e telúrico pelo qual vislumbra um mapa do desassossego, na rota de sensações e explosão dos sentidos, beiral donde o poeta pinta com as palavras a caleidoscópica gravura de seu percurso humano, social e inquiridor. Compõe, assim, um fecundo museu de preciosidades ao rastrear questões que lhe são essenciais em meio aos labirintos, conflitos e demandas contemporâneas, com o amálgama de um intimismo sem afetações, que converge numa arquitetura poética, em que a exegese da realidade interior se conecta com o mundo de cá, prospectando-lhes as minúcias, num exercício depurado e numa dicção povoada de símbolos.
O desvelo com o valor e a função da arte também está expresso nesse livro, como se lê em “Auschwitz”, sintomaticamente uma alegoria da necessidade de se estabelecer uma espécie de campo de concentração textual, onde o trabalho do autor, em contínuo processo, requer uma insularidade necessária até alcançar o esmero da palavra final. Em “Poema” o autor declara-o como seu regaço, o território em que mais se sente à vontade, o seu refúgio estimulante, dele extraindo a seiva elaborada de uma rica escritura, pois “A sua arte é a de auscultar o vazio/ pela artéria de dentro” e, numa solidão luminosa, alimentar sua fome de dizer.
A poesia que inaugura a galáxia literária de André Osório é original, límpida e epifânica: dissemina sua força gravitacional como obra de dimensão superior, que impulsiona “um voltar às raízes,/ à terra…”, pois o autor compreende, na complexidade do escreviver, que sempre estamos fazendo um encontro de contas com a vida, as relações e as pessoas, eis que “aí reside o mundo.. Aí ele escapa”. E nas “intermitências” entre o chegar e partir, entre o visto, o vivido e o sentido, introjeta-se o espelho que agudiza os dilemas da caminhada, mas “os faróis esquadrinham/ o seu reflexo” e o poeta, com seu facho, se apazigua nos amplos espectros de sua poesia, essa arte que, no dizer de Jean-Claude Pinson (“ Para que serve a poesia hoje?”), é “uma física repleta de incerteza”, instância que “faz vibrar em nós a corda enigmática do tempo, isso mesmo em que se mostra mais inescrutável.”
(RONALDO CAGIANO)