AS CORES DOS AUTORES 80ª EMISSÃO 24 AGOSTO 14:30/16:30H LUÍS FILIPE SARMENTO
Escrito por Jorge Gaspar em Agosto 22, 2019
AS CORES DOS AUTORES.
Na tela da Rádio, Histórias, Conversas, Ideias, Sensibilidades. Esculpindo Memórias. Produz Realiza JORGE GASPAR.
Emissão 80 – 24 Agosto.
A visita de LUÍS FILIPE SARMENTO, a propósito da edição do seu mais recente livro KNK, uma edição com a chancela Poética Edições, Braga 2019.
Apresentado a 18 de Maio no ESPAÇO CAMÕES, Praça Luís de Camões Lisboa, pelos escritores Ângela Almeida, Vamberto Freitas e Fernando Dacosta. Lido um texto sobre «KNK» do escritor João de Melo, e Interpretação de textos da escritora e encenadora Luisa Monteiro.
KNK – Um tratado de Existência.
K(ant), Transcendental.
N(ietzsche), Morte de Deus.
K(afka), O Processo Labirintico.
Poemas incluídos em«KNK».
1.
Da metafórica mãe à obra magna: pensa a matéria obscura
e, revelando-se, a ignição é-lhe notícia e reflecte. Este é o princípio:
intui. Não há redondez no caos e se há é um acaso da fricção:
imperfeitas esferas à deriva na alegoria do sangue primevo.
A realidade do fenómeno, a transparência em si, a primeira letra,
a sensação histórica da veia, o plasma ao olhar abismado
do primeiro observador, anónimo, de mistérios. Mutila a geografia
do pensamento, o pretexto, e avalia a substância, questionando-se.
A expressão dos desertos opacos como exclamação da dúvida
entre pontos que brilham mas que se desconhecem.
Eleva-se e esquiva-se ao conflito dos duendes que se antagonizam;
as formas que preexistem dar-lhe-ão seguramente recursos.
Pensa: há um método que é e não é; o mecanismo imperfeito
do conhecimento e a mecânica da contradição. Interroga-se.
O que há em si é uma representação e de si a experiência.
Inscreveu crenças, duvidou da sua estrutura, analisou fenómenos.
Verifica que os sistemas interagem, destruindo-se;
observa, descarta o que é infundamentado, e busca um cardápio
que seja a colecção pura da obra que nos constitui o pensamento.
O que se segue é a arquitectura das ideias.
O registo do obsoleto.
3.
A ideia é uma experiência de prazer, não um dogma divino,
uma viragem na tristeza, na exaustão: o colapso da desistência.
A sua estrutura é edificada a partir da razão de si, explicita-se
na exuberância do objecto que estimula os sentidos.
O deleite de quem observa é a volúpia de quem cria,
a impressão do observador acolhe o objecto que se transmuda.
Produz fenómenos, múltiplas sensações, leituras e perspectivas
do que em si se deu à elaboração do exterior.
Entendimento e sensibilidade confraternizam
no deleite da observação que à observação do criador
lhe produz uma nova experiência, estimulando-o
na criação de experiências de prazeres.
O espaço geométrico espiritualiza-se com a aritmética do tempo,
mitifica-se, e o que encerra oculta-se na metáfora.
O que transparece pode não ser o que na origem é.
5.
Sabe que tudo é formado por coisas simples
e nada simples é
tudo é necessário e mortal. Do dogma à crítica transcendente,
o fragmento da totalidade no espaço e no tempo
é o que se intui, nem olho de deus nem arquitecto do universo
nem ser necessário, nega a sua necessária existência.
A razão de ser de todas as coisas não é deus, talvez a coisa
não se demonstre por impossibilidade da sua nudez ideal.
Do natural defeito ao erro irracional,
a refutação de uma falsa origem, o buraco negro e o seu esplendor
imaginariamente artístico. Onde as periferias são sugadas
e aniquiladas por uma potência teórica
da qual pouco se sabe. O movimento, sem roda nem deus,
faz da expansão a sua existência comum num lugar a haver.
7.
A causa daquele olhar foi a minha distração;
não houve recepção à lucidez daquela presença.
Inconscientemente omisso do mundo, a única existência
na abstração era a arquitectura do edifício da palavra.
Saber e acção, sem a ilusão quotidiana de um olhar,
razão e manifestação da ideia, texto em carne viva,
o sangue nas entrelinhas, o pulsar do ser,
a teoria da existência única.
Talvez a percepção do teu sinal
me levasse ao conhecimento desse olhar que questiona
o homem absorto da realidade dessa existência
que poderia escrever a quatro mãos
o que o presente desconhece do futuro.
10.
Na ordem do tempo, a aventura de sair
para ser, do olho à boca, a experiência do gesto,
o corpo como primeira impressão.
Reconhece a mãe, a madeira, o primeiro ecrã
de um mistério incomensurável.
As estrelas ainda não têm nome
e os mitos tardarão na geografia dos sonhos
e dos desejos.
Expõe-se ao dilúvio de interrogações
e sabe que os dias terão obstáculos.
Não esquece onde está e determina
os passos, eleva-se e percebe o horizonte
de uma possibilidade a haver.
Quando desperta, a origem dá-lhe a dimensão
do caminho andado e em si há algo que se expande
num crânio que se adapta ao que desconhece.
A fêmea observa-o e ele treme.
LUÍS FILIPE SARMENTO, nasceu a 12 de Outubro de 1956. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Escritor, Tradutor e Realizador de Televisão. Jornalista, editor, realizador de cinema e vídeo, professor de Ensaios de Escrita, História dos Modernismos e Estética. Alguns dos seus livros e textos encontram-se traduzidos em inglês, espanhol, francês, italiano, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedónio, croata, turco e russo.
Produziu e realizou a primeira experiência de Videolivro feita em Portugal no programa Acontece para a RTP (Radiotelevisão Portuguesa), durante vários anos assim como para outros programas de televisão. É membro do P.E.N. Club, da Associação Portuguesa de Escritores, do International Comite of World Congress of Poets. Foi Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes (1994-1995) e Presidente da Associação Ibero-Americana de Escritores (1999-2000).
EXCERTO DA LEITURA CRÍTICA DE «KNK» POR ÂNGELA ALMEIDA, INVESTIGADORA, ENSAÍSTA E POETA.
KNK recupera a poesia – logos da libertação humana, amputada ao ser humano, cristalizada num universo estilístico riquíssimo e amplamente inovador , que serve a explanação da existência simbólica: um livro marcado pela mesma competência poética que complementa o formidável manifesto poético do poeta – Gabinete de Curiosidades – , onde também se lê (…)o medo como território dos vencidos, o medo de uma longa/ vida em cativeiro; o medo de ver morrer ao longe/o país do seu nome, a residência do seu afecto, a casa/da sua história. O estranho medo do estrangeiro sem face. (…) (p.24).
KNK é ainda uma poesia que reflecte sobre si mesma, tornando-se também uma verdadeira arte poética: ao anunciar a libertação da poesia, ao presentear-nos com uma escrita que se recusa a rescrever; ao apresentar-nos assim a poesia como o acto puro, inaugural, aquele que é verdadeiramente seminal, este livro apresenta-nos uma profunda e muito importante arte poética.
KNK cumpre a função alquímica da poesia: enquanto espaço agregador, movido pela força motriz do amor, que também enlaça estes poemas, o corpus poético pode fundir os dilemas e, ao fundi-los, cria esse intervalo entre a luz e a sombra ,que permite Ver um Tempo libertador, necessariamente anterior.
Por isso, diz-nos o sujeito poético, em poema 24:
«(…)
Se o entendimento não pode intuir
e os sentidos não conseguem pensar
só há conhecimento de si quando pela força individual
se reúnem para além do matrimónio visual
ou do património em transmutação pela obra do tempo. (…)»
Este livro faz-nos sentir muito menos sós. Depois de várias vezes o ter lido, dei comigo comovida, pelo imenso abraço solidário que este KNK é a cada uma e cada um de nós, e pela competência literária, lugar do imenso respeito por Ela. A Poesia, naturalmente.
TEXTO DO ESCRITOR VAMBERTO FREITAS SOBRE «KNK».
De um mundo em caos e de um escritor que o vive e pensa.
«O espírito humano não é depósito de lamas e narcóticos/nem um peso cansado de uma castidade inefável/à deriva por abismos que se escondem atrás dos céus» (Luís Filipe Sarmento, «KNK»)
KNK, as iniciais de Kant, Nietzsche, Kafka, o primeiro vindo do século XVIII e falecido no início do século XIX, e os outros dois já no princípio ou meados do século passado, é de uma audácia literária bem pouco comum entre nós, ou em qualquer outra língua. Luís Filipe Sarmento vê e vive um mundo que nos é comum, mas entende-o de formas muito diferentes e arrojadas: razão (pura ou não), emoção e contundência crítica, e logo depois na realidade absurda que vem de longe e se agrava nos nossos tempos. Tenho de confessar que é em Nietzsche e Kafka em quem mais me revejo e me percebo. Para o alemão Kant, sobre o qual a mítica diz que era tão racional e universalista, em que até os vizinhos acertavam os relógios pela passagem em frente às suas casas, tenho pouco conhecimento, e até medo: o germânico tão certo e racional, mesmo que universalista ou anti-nacionalista. Para com o ensaísta do absurdo mas sobretudo da emoção (Kafka) tenho outra reacção. Foi talvez o filósofo mais mal interpretado na história do pensamento ocidental modernista. Quando os nazis o reclamavam como seu suposto ideólogo, vinha ao de cima toda a sua ignorância de muitos desses seus falsos admiradores, incluindo o próprio Hitler. Quanto a Kafka, a sua linguagem poderosa, mas nunca ofuscada, não deixava dúvidas aos leitores mais perspicazes ou inteligentes. Nietzsche escreveu, por exemplo, que um dos sintomas dos intelectuais mais ignorantes eram ser anti-semitas. Com a mesma força escreveria que nunca tinha estado em África mas suspeitava que estava cheia de génios. A sua ideia do “super-homem” queria apena dizer que deveríamos assumir as nossas responsabilidades morais e de gente com força na luta pelo bem. Ainda quanto a Kafka, pouco terei mais a dizer. Era o pensador que através da palavra retratava o absurdo do seu tempo, cidade e condição de vida numa Europa já totalmente burocrática e sem rumo, a não ser a caça ao dinheiro e ao poder dos privilegiados. Vivia numa sociedade já sem razão pura ou crítica, para voltar a mencionar Kant. Kafka parece o Fernando Pessoa em todos os sentidos. Empregado numa empresa de seguros, mero gestor de contas e cartas comerciais, e talvez que o desesperava. Como Pessoa, ninguém por certo se amava verdadeiramente, ou eram todos e todas mero escape ao tédio e à raiva dos dias. Os dois, em vez da cama, escreviam cartas de amor, esse amor sempre e simplesmente falado ou escrito, mas nunca continuado. Uma vez mais, o artista da palavra consciente do absurdo do seu lugar e tempo, e só pela literatura escapavam ao desespero das suas circunstâncias e sorte de vida. Foram, todos eles, torturados pela sua própria inteligência e consciência. É esta a minha interpretação deste singular livro de Luís Filipe Sarmento, em que tudo vale a pena para além das suas linguagens, do seu estado interior que por si só nos retrata toda uma sociedade oca ou vazia, toda uma sociedade despida do seu próprio ser e crença.
Foi Edmund Wilson, que Harold Bloom viria a considerar o crítico canónico norte-americano do século XX, que escreveu o seguinte: primeiro, que a invenção do telégrafo transformaria toda a prosa, tornando-a mais compacta e directa; depois a prosa do modernismo literário iria conter em si toda a poesia até então limitada à forma de versos. Claro que exagerou, mas não na totalidade, como todos sabem, especialmente após a sua leitura atenta de James Joyce. A escrita luminosa de Luís Filipe Sarmento, para mim, está entre os dois géneros literários. Ao manifestar o seu interiorismo fica retratada toda uma sociedade, a nossa, em textos que ora são poemas puros ora prosa poética. Ele não se poupa nem a si e muito menos o mundo que o rodeia. Isto é literatura no seu mais profundo estado. Quando fala de si, fala de nós. Quando fala de nós, fala de nós todos. Os escritores ditos “malditos” existem noutras línguas e contextos sociais. Luís Filipe Sarmento faz-me lembrar um Charles Bukowski no seu melhor. Que a sociedade tome conta de si, que tomarei conta de mim. Ao dizer isto, diz tudo sobre a nação a que pertence. Insinua ainda mais: eu sei onde estou e à comunidade a que pertenço, mas não entrarei no seu jogo, na sua sujeira, e muito menos nos jogos literários que a justificam ou elevam os medíocres da moda. Por outras palavras, eu sou eu, e que fiquem com o que vos convém. KNK não tem complacências ante a cobardia ou os chamados costumes da sociedade. O escritor tem como lema a sua autenticidade, quer gostem ou não. É o que acontece neste livro. Poema a poema, prosa a prosa. Sociedade, homens e mulheres, o destino num determinado espaço nacional ou universal.
“Cria metamorfoses de ficções/onde aparentemente tudo lhe é indiferente/; ri do seu humor e, na distância, liberta-se/da ingenuidade que o traiu/no pavimento lamacento das larvas./De subalterno obscuro, a sua personagem/concebe logros, falácias, enganos/entre brumas sinistras que o divertem./Exclui-se, expulsando fantasmas viperinos,/e inclui-se, inimitável, no programa estético/que desmorona os pilares cobertos de peçonha./Ninguém o identifica, mas não esconde o nome,/porque tudo nele é novo, o seu processo/que tudo altera sem que a vida quotidiana/seja disfarçada. Sabe que as suas metamorfoses/o tornarão num ser humano, um plano/de que a literatura negra se faz rindo/para além de todos os projectos editoriais/infectados pela burocracia do poder obscuro.”
Sim, reconhecemos Kafka aqui de imediato, e muito provavelmente o autor de nome Luís Filipe Sarmento. Seja num poema, numa prosa, ou nos géneros juntos, existe em cada alusão no autor-outro um pouco ou muito de nós. São estes os chamados escritores “malditos”, repita-se, nas mais variadas literaturas, os que dizem em voz alta ou serena as misérias que todos vivemos e sentimos nos espaços sem convivência. O chamamento a estes três génios da escrita ocidental em KNK tem tudo a ver com os nossos dias presentes. Serão estes, digamos também assim, os escritores que no futuro passam de uma certa marginalidade para o centro do cânone. Em Portugal já aconteceu a outros, e repito o nome de Fernando Pessoa, como o de Mário Sá-Carneiro, entre alguns outros que fizeram da revista Orpheu, uma das mais consequentes e douradoras publicações que relembra e se integra na poesia universal. A desatenção da fúria ignorante de muitos dos nossos periódicos literários e generalistas só lhes condena a arquivos que poucos consultam, as páginas que pouco ou nada significam. A “prosa” em forma de poesia de Luís Filipe Sarmento vai permanecer como um testemunho de um tempo que um dia será lido, pensado e relembrado, com espanto e admiração. Isto acontece em vários países, mas os de língua portuguesa quase entram no êxtase da sua indiferença, privilegiando os escritores estrangeiros, que também devem ser lidos, mas nunca tomando o lugar daqueles que connosco vivem o drama de um país permanentemente no esquecimento ou na sua auto-desvalorização.
Algo mais sobre KNK: é precisamente sobre o estado vivido e o sentir íntimo, o do interiorismo do escritor, que passamos a ver como num quadro de mestres (tão diferentes como um Picasso espanhol ou um Edward Hopper norte-americano), toda uma sociedade tanto na sua violência escondida ou aberta, como na sua solidão. De amores e sobretudo de desamores vive a maioria da humanidade. Luís Filipe Sarmento escreve brilhantemente sobre a condição humana em que nos encontramos, não só de agora como de sempre. A sua escrita, por ser tão pessoal, torna-se, uma vez mais, universal por nos colocar no lugar desta e das mais longínquas geografias e culturas. Este não é um livro para todos, é para quem saber ler o que está escrito, e ainda mais o que fica por dizer nas entrelinhas. A grande literatura, em qualquer uma das suas formas ou géneros, é a que fica. Como num quadro de Jackson Pollock, que à primeira vista parece sem sentido. Olhem para os detalhes, e de lá sai toda a angústia e mensagem do artista. Este livro de Luís Filipe Sarmento faz algo de semelhante. Cores e coração em ebulição. Eis a sua beleza ou, se preferirem, a sua mensagem.
DOIS FRAGMENTOS DO TEXTO DE APRESENTAÇÃO QUE O ESCRITOR JOÃO CARLOS DE ABREU FEZ NA 45ª FEIRA DO LIVRO DO FUNCHAL.
(…)
Falo do poeta Luís Filipe Sarmento, que é também escritor, novelista, jornalista, realizador de vídeo e de cinema, uma personagem que nos conquista, pelo seu discurso inteligente e pela versatilidade cultural. Um conversador admirável, um contador de histórias que contagia e atrai.
Embora tenha nascido em Lisboa, ele é um verdadeiro cidadão do mundo, não só por uma vivência diversificada em muitos países, mas também pelo sentir, estando, sendo, numa busca constante de saber, de conhecer. Dominar muitos dos idiomas à perfeição permite-lhe embrenhar-se com mais facilidade no países e entender a suas gentes numa convivência preocupada em viver as suas tradições, culturas e histórias, o que o enriquece de sobremodo, tornando-o ecuménico no seu espírito e defensor de direitos humanos. Ele pode cantar outros povos, na essência da exaltação do que são, seres humanos à procura de paz e de amor, porque o mundo esfomeado destes sentimentos desmorona-se cada vez mais. Penso que ele, poeta, desenhou nos olhos cidadãos de países distantes e guardou deles as emoções sentidas; meteu-as na memória do tempo, conservando-as até ao momento de torná-las palavras escritas e colocá-las no tempo da memória.
Luís Filipe Sarmento é um dos conceituados poetas do nosso país e do nosso tempo, porventura dos mais universais. Possui uma linguagem que prende os leitores que, num crescente de curiosidade, de página a página, se vão familiarizando com a sua escrita e filosofias subjacentes, vivendo-as empaticamente.
(…)
Falei-vos um pouco do Poeta, do escritor, do homem. Agora tentarei dar-vos um pouco do seu último livro “KNK”, um conjunto de considerações poéticas a partir da elaboração filosófica de três grandes personalidades: Kant, Nietzsche e Kafka, um trabalho de profundo conhecimento das filosofias dos filósofos referidos que tanto marcaram o mundo. A força das suas considerações arrebatam pelo que as palavras nos dizem, revelando o pensamento rico do seu autor e como essas nos influenciam, obrigando-nos a reflectir.
TEXTO DO ESCRITOR JAIME ROCHA, sobre «KNK».
Ele é um filósofo zangado e eu gosto de filósofos zangados, filósofos que rasgam a paisagem literária e incomodam o bem-estar da arte poética dos nossos dias.
O Sarmento é um rasgador, um respigador atrevido no sentido em que Agnès Varda olhava para o cinema, para os gestos e as palavras com que construía os seus filmes, a vida, as pessoas, o pensamento, a rebeldia, o combate, o poema.
O Sarmento com o seu KNK – KantNietzscheKafka – demonstra não só a força violenta do texto nos seus aspectos ideológicos e poéticos, como encaixa num pensamento contemporâneo anti-sistema.
Estes textos são subversivos, chamuscam todos os Poderes, não só porque são perigosos, mas também porque entram no meio literário, afastando com eles, como uma enxurrada, os clichés, os bonitinhos, o lirismo serôdio, as boas intenções, numa palavra: o choradinho.
KNK acentua de um modo decisivo, uma postura única no meio literário português, pela diferença, pela originalidade, pela versatilidade, aquilo que já anunciava nos seus últimos livros, nomeadamente no seu pessoalíssimo, raro e hipermoderno “Gabinete de Curiosidades”.
TEXTO DO ESCRITOR JOÃO DE MELO SOBRE «KNK».
Ouvi em tempos alguém dizer que a filosofia portuguesa dificilmente existia em si mesma, porque quem entre nós a criava eram os poetas, e que por isso ela estava sobretudo na nossa poesia. A tomarmos por boa uma tão duvidosa afirmação, ficamos perante várias hipóteses: uma falsidade mais ou menos inofensiva, um excesso de zelo, ou uma tentação subliminar de humor acerca dos poetas e dos nossos filósofos. Alguma coisa de plausível e de pertinente, contudo, pode ou deve existir nessa espécie de “boutade” à portuguesa. Vejo nos poetas que frequento uma constante filosófica; e vejo narrativa poética, expressão lírica, ideias, pensamento, ideologia, intromissões no discurso e na pessoa e na obra do outro. Luís Filipe Sarmento parte ao encontro dos passos perdidos de dois filósofos (Kant e Nietzsche) e de um escritor, Kafka – poeta do absurdo e do cepticismo, criador de uma literatura narrativa que em si contém tanto de “literário” como de “nova filosofia”.
O poeta de “KNK” constrói neste seu livro uma forma de abordagem crítica, mas também reflexiva, da obra daqueles autores. Aquém e além deles, cria a sua linguagem, interpela conceitos, afirma a sua filosofia poética, feita de tempo social e de marcação ideológica. Este é também um livro de ideias. Não faltam dualidades e dicotomias ao discurso poético, dialógico, de índole temática – entre o divino e a maldição humana, entre a paz interior e a fúria, a verdade e a mentira, o real e o virtual. Saúdo em Luís Filipe Sarmento o poeta da palavra e das imagens, da retórica e da urdidura laboriosa, por vezes complexa e sempre problemática, que atravessa os seus poemas.
TEXTO-POEMA DE ALBERTO PEREIRA SOBRE «KNK»
UM DISPARO DE PÓLEN NO ALTAR DO PENSAMENTO. “KNK” de Luís Filipe Sarmento entra com ímpeto para o lote dos consagrados ao meu Olimpo literário de 2019.
Kant, Nietzsche e Kafka, se fossem vivos, não poderiam queixar-se de desigualdade perante o autor, porque o mesmo foi rigoroso consagrando 25 textos a cada um.
Filosofia de alto calibre, dividida em três partes: Transcendental (Kant), Morte de deus (Nietzsche), O processo labiríntico (Kafka).
O que Luís Filipe Sarmento consegue com este livro é um disparo de pólen no altar do pensamento. De uma só vez, despe deus, tempo, espaço, corpo, linguagem e silêncio. O que se pretende aqui, é caminhar pela invisível pronuncia da mente e não cair na infinda tabuada dos conceitos.
O autor procura o homem que negoceia o temperamento do granizo e se espiritualiza no frio, porque entende que só pelo ciclone o pensamento consegue entrar numa longa avenida de especiarias.
Da leitura cirúrgica desta obra repleta de chamamentos, podemos discernir: o movimento que renega deus para o interior se poder avolumar. Quem espera pelo Criador para se mover, fica no eterno tráfego do medo. E aguardar que o culto coloque algo em marcha é prender o cometa numa faca; o tempo, habitação na qual a maturidade vai imunizando com janelas a cegueira; o silêncio como única linguagem que faz fotossíntese e nos pode conduzir a uma doutrina não rasurada.
Na cartografia que o autor vai construindo, aprendemos: para atingir a claridade, por vezes, temos de engolir os pontos cardeais dos loucos. Só assim, a mente alcança uma voltagem de árvores que ultrapassa o divino.
Na segunda parte, dedicada a Nietzsche, está patente o fim de deus. E com esse desaparecimento, a aurora boreal deixa de ter cadastro. O prazer dá largas braçadas. O sexo pode entrar pela demência como um animal que se alimenta de harpas. A garganta larga o rapto e ascende como liturgia que não precisa de traficar cotovias nubladas. O que acontece aqui é a extinção do enxoval de salmos bolorentos, deixando a religião numa frequência desértica.
Talvez Cioran se pudesse juntar a esta tríade, não sendo a minha intenção desvirtuar o excelente título “KNK”, deixando-o um pouco mais obeso, “CKNK”. Mas, na verdade, Cioran insere-se perfeitamente nesta linha de pensamento, ao afirmar: “Desde o princípio dos tempos, Deus tudo escolheu para nós, até as nossas gravatas”.
A projecção filosófica de “KNK” insinua que temos de escolher a indumentária para o pensamento. Saber que na ascensão ou na ruína, a paisagem deve ter o nosso autógrafo.
Na última parte consagrada a Kafka, entramos na linguagem sem celibato. Textos que se podem lançar do onírico trapézio de Samsa ou K., fazendo longas piruetas na clorofila dos vocábulos.
Em suma, estamos perante um livro de uma verticalidade tremenda, onde Luís Filipe Sarmento deixa um alerta: temos vírgulas em todos os vocábulos com medo que a sociedade solte os cães sobre o nosso poema. Mas afinal, somos nós que mordemos as vértebras à claridade.
Uma obra sublime.
TEXTO DO POETA TIAGO ALVES COSTA SOBRE «KNK».
Certas obras supõem para mim um salto mortal sem rede. Já vivi vários: Whitman, Herberto, Clarice. Neste sepulcro em que hoje nos movemos, poucos são aqueles capazes de nos assombrar no escuro da leitura e paredes meias atingir o belo. E todo o nosso transe é justamente a experiência da ruína desse muro e da abertura de uma paisagem. Luís Filipe Sarmento é mestre nesse desígnio. É capaz de nos juntar a todos na nossa dor, no nosso sonho, no nosso pessoalíssimo modo de encarnar a morte, e soprar-nos ao ouvido com a mesma faúlha, a mesma réstia de fogo. Os seus poemas erigem-se como um monumento que ilumina o silêncio. Será verdade que na morte haverá um alívio na música? No meu mundo de paralelismos imaginários vejo-o ao lado de Carlos Edmundo de Ory. Coisas do meu inconsciente. Mas é dessa inesgotável fonte onde o poeta exerce o seu transe, justamente sobre este fio de contrapesos, que ele consegue extrair o mais precioso metal: louco alquimista que lavra no verso a tensão dos nossos medos e dos nossos desejos mais secretos e profundos, imagens talhadas com a precisão de quem conhece o inferno humano e a divina perfeição da matéria e as integra perfeitamente na realidade, ou na verdade, do poema. Este é um artefacto que está talhado para nos seduzir. É uma voragem, um zodíaco de feras. Um lugar que gesta, recebe e incarna o acontecimento. Porque fora do poema tudo o demais resulta desnecessário. KNK trata-se, pois, de um acto divino e diabólico: roubar a palavra a deus e retirar a razão ao diabo. Poucos o conseguem como o Luís. Jogar com os elementos mais genuínos, com as cores primárias e sobre o espaço da mais radical saudade: o mistério da vida. Conservar com isso todas as funções que foram encomendadas desde que o poema nasceu: música, conhecimento, jogo, catarse, comunicação, álgebra superior das metáforas, fingimento das coisas úteis e inúteis, o segredo “Nunca se aprendeu uma verdadeira obra de arte senão expondo-a indubitavelmente como segredo” ( Walter Benjamin). E nós pertencemos a este tecido, somos esse tecido cintilante. Sob esses vagalhões de estrelas com que, na ausência de Deus, respondemos ao nada e à dor. Quanto mais Deus nos vira as costas, mais o clarão se atiça lá atrás. Aqui: o poema. O olhar que descobre as relações ocultas que há entre as coisas, vincula e é fundador de duração. E perante todo este aparato verbal pensamos na nossa vida pequena a que facilmente sucumbimos com voluntarioso ímpeto dos méritos. Para quê este mundo infindável de tragédias, sobressaltos, honras, o sonho que alimentamos para que possamos tapar os ouvidos ao roer subterrâneo da vida real, a barbárie? Luís Filipe Sarmento não faz cedências paliativas. Sabe que esta viagem conduz-nos velozmente ao coração alucinado de um bosque onde dançamos felizes sobre a fome e sede. E por isso traça sobre nós uma senda própria tomando para si todos os elementos. Como sábio que é (basta ouvi-lo por uns momentos) vai beber de diferentes escolas e tradições e assim submeter-se a uma experiência que procura superar os próprios confins da linguagem, um pulso constante, uma tensão de opostos onde se fundem sobre o verso o corpo e espírito, a ciência e crença, filosofia e alucinação. E é assim que ele cria o mistério na matéria, tenciona os planetas no vazio, doma o azar, instaura um novo e provisório caos e reinventa um novo mundo. E hoje em dia são muito poucos aqueles capazes desta proeza.