CASA DA MÚSICA
Escrito por Jorge Gaspar em Fevereiro 26, 2021
TRANSMISSÃO ONLINE
EDWARD ELGAR Nimrod
CHARLES-MARIE WIDOR Tocata da Sinfonia para órgão n.º 5
NOTAS AO PROGRAMA
Há alguns anos, comprei um livro intitulado Studies in Music, editado em 1901. Era uma colectânea de ensaios e artigos sobre música clássica — abordando aspectos relacionados com a interpretação e curiosidades sobre os compositores. Voltei a folheá-lo recentemente e percebi, por acaso, que reúne alguns dos diferentes elementos deste recital. Para começar, há um artigo magnífico escrito por Charles-Marie Widor intitulado John Sebastian Bach and the Organ. Sendo Widor um organista conhecedor e um dos principais intérpretes e estudiosos de Bach do século XIX, é natural que lhe tenham pedido a partilha de alguma da sua sabedoria e da sua abordagem pedagógica à interpretação das obras para órgão daquele compositor. O artigo é especialmente interessante porque Widor estava, através dos seus professores e colegas, em contacto com memórias vivas de J. S. Bach, o que confere direcção e autoridade à sua escrita. Um dos últimos alunos de Bach foi Johann Christian Kittel (1732-1802/9?), organista em Erfurt (Alemanha). Kittel, por sua vez, ensinou Johann Christian Rinck (1770-1846), que foi colega próximo do organista belga François-Joseph Fétis — o professor de Widor. À sua maneira, Widor esteve em contacto com relatos informais a respeito da pedagogia do próprio J. S. Bach e do seu estilo como instrumentista, que descreve assim: “Ele tocava com ritmo admirável, um conjunto absolutamente polifónico e com uma clareza espantosa. Não tocava rápido, mantinha-se em pleno domínio de si próprio e do tempo… O efeito era de incomparável dignidade e grandeza.”
A Tocata e Fuga em Ré menor, BWV 565, é algo singular entre as obras em grande escala para órgão de Bach. O Prelúdio inicial (o título Tocata foi adicionado gerações mais tarde) tem um estilo improvisatório, com floreados, silêncios inesperados e acordes dissonantes típicos do stylus fantasticus — uma característica própria da música do Barroco inicial, amplamente usada (por exemplo) por Dietrich Buxtehude (1637-1707). A Fuga prossegue com as figurações de tocata dando entrada ao seu próprio tema, e inclui longos episódios de figurações em estilo livre que, também elas, transmitem uma sensação de improvisação à obra, contrastando com as estruturas intrincadas e orgânicas típicas da abordagem de Bach na composição de fugas. A Tocata e Fuga reflecte, portanto, a mistura de técnicas de improvisação e composição de que faziam uso frequente os compositores do Barroco, nas suas obras. Widor conta-o assim: “quando visitantes notáveis pediam a Bach para tocar órgão, este geralmente escolhia um tema e tratava-o de todas as formas e feitios, chegando por vezes a tocar durante mais de uma hora sem interrupção. Primeiro tratava o tema como um Prelúdio e Fuga nos registos de base do grande órgão; depois gostava de variar os registos, numa série de episódios composta por duas, três ou quatro partes. Depois aparecia um Coral, cuja melodia era interceptada por fragmentos do tema original. Concluía com uma Fuga usando a registação plena…”
O próprio Widor apreciava mais a composição do que a improvisação e dedicou-se a escrever um corpus substancial de obras para os novos órgãos de estilo orquestral e poder imenso concebidos por Aristide Cavaillé-Coll (1811-99). Os teclados destes novos instrumentos tinham uma acção muito mais leve do que a dos órgãos barrocos de Bach, pelo que se tornou habitual os organistas franceses se formarem enquanto pianistas virtuosos, transferindo depois essas competências para o órgão. Além disso, tocando em instrumentos Cavaillé-Coll, os organistas podiam criar efeitos de crescendo avassaladores, combinando registos e manuais através de um sistema de pistões e pedais. O americano Clarence Eddy, ao visitar Paris, descreveu uma apresentação de Widor da seguinte forma: “Numa ocasião particular, vi-me no sétimo céu; a obra escolhida era a sua Tocata em Fá, que tocou maravilhosamente. Reduz o órgão e volta a fazê-lo crescer da forma mais espantosa; não é possível obter esse resultado com sucesso em mais nenhum órgão… Faz um diminuendo que se revela extraordinário naquela igreja, e um crescendo que simplesmente nos faz levitar. Ele toca com um enorme vigor, é muito rígido no seu ritmo e quase um fanático no que respeita ao ritmo e ao fraseado.”
De regresso à minha colectânea Studies in Music, é uma coincidência o facto de outro artigo —Wagner in London — ter sido escrito por August Johannes Jaeger (1860-1909), um amigo chegado de Edward Elgar e a pessoa que inspirou uma das peças incluídas neste curto recital: a variação Nimrod, a nona das Enigma Variations. Elgar começou a escrita das Enigma Variations em 1898 e escreveu então a Jaeger: “Desde que voltei, esbocei um conjunto de Variações… sobre um tema original: estas Variações têm-me divertido porque as etiquetei com as alcunhas dos meus amigos — tu és Nimrod. Ou seja, escrevi cada uma das variações de modo a representar o humor do ‘participante’ — gosto de imaginar o ‘participante’ a escrever a variação, ele próprio (ou ela), e vou escrevendo o que eu acho que eles teriam escrito — se fossem suficientemente tolos para compor — é uma ideia engraçada e o resultado é divertido para quem está nos bastidores, sem afectar o ouvinte que nada sabe! O que te parece?” Como Jaeger significa ‘caçador’ em alemão, Elgar usou o título bíblico Nimrod — um caçador intrépido que se encontra no livro de Génesis — gracejando com um jogo de palavras oculto.
Finalmente, gostava de dizer algo sobre a improvisação baseada em Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen de Franz Liszt — ele mesmo conhecido como um óptimo improvisador. Na sua juventude fazia já uma abordagem muito liberal ao repertório, ornamentando, transcrevendo, romantizando, expandindo peças, usando frequentemente estas explorações musicais como veículos para aumentar as suas competências técnicas como pianista; mas alguns testemunhos seus contemporâneos tornam claro que a improvisação era parte integrante dos seus recitais. As suas composições nasciam das improvisações em concerto que, desenvolvidas até um determinado ponto, eram transcritas — captando uma conceptualização ou uma versão específica da peça. Assim, não surpreende que seja possível encontrar várias versões de peças de Liszt, de acordo com as sucessivas mudanças das suas conceptualizações, na procura de novos efeitos e alterações subtis de estrutura e forma. Enquanto Liszt viajava em digressão pela Europa, abismando públicos com o seu enorme virtuosismo e efeitos expressivos, a arte da improvisação já enfrentava um declínio. Os músicos, treinados nos novos conservatórios e nas instituições musicais do século XIX, desenvolviam abordagens mais históricas sobre o repertório: compositores como J. S. Bach eram redescobertos e era mais apreciada a interpretação exacta das suas partituras do que as atitudes de improvisação que lhes tinham dado origem. O músico moderno, um especialista em interpretação precisa das partituras de outro (o compositor criativo), era já uma realidade no século XIX, antes de se tornar o modelo da formação musical institucionalizada ao longo dos cem anos seguintes, até aos nossos dias.
O estilo público de improvisação de Liszt, como uma demonstração de capacidades extraordinárias, virtuosismo extremo e inspiração espontânea, é uma abordagem bastante diferente da perícia de artesão de J. S. Bach (ou mesmo de Edward Elgar, cujo estilo excêntrico e exploratório foi captado numa série de gravações realizadas em 1929). Contudo todos estes homens, cada um à sua maneira, desfrutavam e valorizavam o acto de criar música em tempo real, não se prendiam de forma nenhuma a uma única versão de uma partitura e pensavam na música em termos de conceitos flexíveis e generalizados que podiam ser torcidos e orientados para um fim expressivo. Na minha opinião, enquanto músicos clássicos, deveríamos tentar recuperar este deleite e esta capacidade natural para a criação da nossa música, em vez de apenas a interpretar; e deveríamos também apoderarmo-nos da música que tocamos, acrescentando a nossa própria marca pessoal enquanto artistas criativos. A música clássica ocidental é única (pelo que sei) entre as culturas musicais do mundo ao separar tão rigorosamente as capacidades de criação (composição) das capacidades de interpretação. Isto resulta numa quantidade de especialistas em cada um dos domínios — o que, durante algum tempo, trouxe benefícios consideráveis a cada disciplina, aumentando não só os padrões de perícia e controlo sobre formas sinfónicas de grande escala (compositores), mas também os da perícia e precisão técnica que os artistas interpretativos imprimiram na sua leitura de obras canónicas. Contudo, este período acabou e a música clássica encontra-se em perigo de ossificação, de perpetuar um corpo de repertório cada vez mais histórico, e de se tornar incapaz de responder de modo expressivo aos acontecimentos da vida moderna e às necessidades de um público que quer que a sua música seja viva e relevante.
É por estas razões que eu escolho improvisar, olhando também para o passado como fonte de orientação e inspiração. Neste recital, tomo a figura de Franz Liszt como modelo recriando algo da sua abordagem livre à estrutura e à forma, mas mantendo alguns dos aspectos e temas da composição original. O tema principal, cromático descendente, de Weinen, Klagen, Sorgen, Sagen tem origem na linha de baixo da cantata de J. S. Bach com o mesmo título.
Jonathan Ayerst
Tradução: Fernando Pires de Lima