Muito precoce, apenas com quinze anos, frequentando o Colégio Moderno, profere uma conferência no centenário do nascimento de Antero de Quental., subordinado ao tema Antero, poeta e homem de acção, a convite de Álvaro Salema, seu professor de filosofia.
Lê muito. São alvo das suas leituras Júlio Dinis, Camilo, Jules Verne, Eça, Antero, Herculano, Teixeira-Gomes, Fernando Pessoa, Charles Morgan, Valéry, Tolstoi, Huxley, Proust, Gide, Régio, Nemésio, Garrett e T.S.Eliot.
Outros seguirão na esteira dos seus interesses, alimentando a panóplia que o guindará aos mais altos patamares da intelectualidade portuguesa.
Vocacionado para grandes voos, não obstante os esbirros do Estado Novo, será professor catedrático a 2 de Julho de 1990, por decisão unânime do Conselho Científico da Faculdade de Letras de Lisboa, tendo-lhe, antes, em 1987 sido atribuído o título de Professor do Ano pelo Jornal Universidade Hoje.
Teresa Martins Marques (TMM) fora aluna de David Mourão-Ferreira (DMF), no ano lectivo 1973-1974, na cadeira de Teoria da Literatura, no curso de Filologia Românica. Tempo de grandes e gratas recordações. Cresceu-lhe o entusiasmo pelas lições daquele a quem apelidava de Mestre. Dos clássicos aos modernos se compunha o saber de quem tanto ensinou. Depois, em tempos de mestrado, em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, David Mourão-Ferreira será o seu orientador, trabalhando em O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis, cuja edição em livro viria a prefaciar.
TMM era por força dos estudos desenvolvidos em torno de David Mourão-Ferreira a pessoa mais sabedora sobre o escritor.
Com um espólio imenso, David Mourão Ferreira deixa o mundo dos vivos. A viúva, Pilar Mourão-Ferreira, representante dos herdeiros literários solicita às entidades oficiais apoio, tendo em vista a organização do legado, pelo que cabe a TMM a organização do acervo do escritor que se encontrava nas duas casas em que residiam: a de Lisboa, junto ao Campo Pequeno e a de Cascais, na Quinta da Bicuda
Orientando uma equipa devidamente credenciada, a partir da casa de Lisboa, é enorme a tarefa que a espera: materiais empilhados em cadeiras por toda a casa, com folhas soltas ou dentro de caixas, armários e gavetas, sem excluir a arrecadação e os quartos de dormir, sem qualquer tipo de organização definida. Para além da equipa que colaborou com Teresa Martins Marques, outros apoios recebeu do exterior, nomeadamente do Professor Carlos Reis que a orientou com prestimosas sugestões bibliográficas, não faltando a ajuda da empregada da casa, D. Inácia Estaço, que durante os últimos vinte anos acompanhou David Mourão-Ferreira e que conhecia como ninguém os cantos da casa.
Obedecendo a um plano devidamente gizado, compartimentando todo o material, onde se incluía trabalhos escolares, cadernetas, desenhos de infância e adolescência, documentos militares, cartões de identificação, passaportes, documentos de impostos, vencimentos, contas bancárias, bilhetes de viagem, facturas de hotéis, restaurantes, não faltando as contas de alfaiate e uma entrevista de 177 folhas solicitada por Graziana Somai, em 14 classes, foi ocupado um tempo que contemplou os anos de 1997 a 2004. Foi muito o material encontrado: 10 000 cartas constituem a correspondência, número, eventualmente, aumentado, uma vez que DMF tinha o hábito de esquecer as cartas dentro dos livros.
De entre as peças fundamentais para os investigadores, ressalta o Diário Íntimo mantido com regularidade de 1947 a 1955, correspondendo a 20 cadernos de bolso, excluindo o caderno de 1946 que não pertence à característica “série de capa negra”.
O espólio documental ocupa trinta e três metros de prateleiras de uma exígua divisão da casa, antigo quarto da empregada, como se fosse um arquivo provisório, enquanto não seguirem para o local que os herdeiros de DMF venham futuramente a escolher como destino final, sendo desejo de TMM que o local adequado seja a Biblioteca Nacional.
Muitos são os trabalhos produzidos por TMM em torno da obra de David Mourão Ferreira, desde 1996 a esta parte. Resultado do contacto e do conhecimento com o espólio surgiu uma tese de doutoramento apresentada em 8 de Novembro de 2011, na Faculdade de Letras de Lisboa, defendida perante um júri constituído por Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, José Carlos Seabra Pereira, Paula Morão, Maria de Lourdes Câncio Martins e Fernando Pinto do Amaral, na qualidade de orientador da dissertação.
És a clave de Sol, és a clave da sombra, é um dos versos do poema In Memoriam Memoriae, publicado em 1962, inserto na Obra Poética – 2º. Volume, Livraria Bertrand, 1980, pretexto para a tese de doutoramento de que resulta o livro, feito de modo mais ampliado para um público mais vasto e não apenas académico.
Nos últimos dois anos TMM tinha-nos proporcionado A Mulher que venceu Dom Juan e O Fio das Lembranças. Biografia de Amadeu Ferreira. Com natural desejo metemo-nos na leitura deste David Mourão-Ferreira, embora conhecêssemos a biografia de autoria de José Martins Garcia, publicada em 1980 pela Bertrand e já nos tivéssemos debruçado na Revista Relâmpago nº 24, de Abril de 2009, praticamente, toda dedicada a DMF, com um trabalho de Teresa Martins Marque. A obra vinda agora a público e de que nos ocupamos, tem 774 páginas de texto, com uma bibliografia pormenorizada. Um livro que nos dá a conhecer um Portugal que vai de 1927 a 1996.
Sob o signo de Ulisses, damos início a uma viagem que se divide em capítulos devidamente identificados, Aprontando a Nau, Rumando para altos destinos, Navegando ao sabor das ondas, Sofrendo ventos contrários, Hesitando entre Cila e Caríbdis, Descendo aos Infernos, Afiando a Lança Guerreira, Regressando à Mater, Fundeando a Âncora, Desbravando a Selva de Papéis, uma metáfora que vamos dilucidando à medida da integração no texto.
Uma cronologia de 16 páginas ajuda-nos a complementar um texto que se distende acrescentando valor ao conhecimento que vamos adquirindo no estudo de um homem que ombreou com os maiores na literatura nacional.
Através de um texto lúcido, constituído sem adjectivação exagerada, de palavras temperadas, mesmo quando a análise do texto obriga a algum tecnicismo, sentimo-nos dentro da palavra aprazível, informalizada, dando conta de alguém que possuidora de grande lastro cultural se apurou diante de um manancial de informação e conhecimento para trazer até ao leitor, estudioso ou não, o que leu e ouviu de um escritor que para a língua portuguesa transferiu a sua sensibilidade, enriquecendo-a de melodia e sonoridade.
Sendo a autora uma apaixonada da obra davidiana, já que com ela lida desde 1971, natural seria que a paixão a conduzisse a algum exagero. De forma paulatina, vamos tomando conhecimento da publicação de textos, somos informados que aos sete anos, em 17 de Março de 1934, declara em palavra escrita “ O David Éh um Republicano”, e que o hífen de Mourão-Ferreira só vai utilizar aos cinquenta anos. Biblioteca, a primeira palavra difícil que aprende, não fosse o pai trabalhador na Biblioteca Nacional.
Em 1948 frequenta em Paris um curso de férias para estrangeiros na Sorbonne, tendo como colegas Maria de Lourdes Belchior, Matilde Rosa Araújo, António Coimbra Martins e Eugénio Cardigos.
A sua vida privada não deixa de ser citada. Casamentos e divórcios fazem parte da informação que os mais dados às questões de coração tanto apreciam, não fosse DMF uma poeta do amor, cuja voz inspirava muita gente, não esquecendo a poesia de sua autoria, gravada em disco e dita por ele.
Conhecido pela utilização do cachimbo, pertinentemente escreve no Diário Íntimo, em 11 de Julho de 1949, que possui 15 ou 16 cachimbos, que lhe fazem companhia nos momentos de solidão e estímulo e nos de convívio. Partiram-lhe um cachimbo – Buckingham-Old English Style. Cachimbo que afinal tinha conserto, mas que não deixou de verter algumas lágrimas.
Intelectual multifacetado: poeta, crítico, contista, tradutor, dramaturgo, actor, ensaísta, fundador de revistas, declamador, cronista,, director de jornais , professor, director de Bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, membro do Governo, bastamente premiado, a sua vida e obra profusamente divulgada neste livro de autoria de Teresa Martins Marques, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, publicado pela Âncora Editora.
Acrescentando algo de mais à nossa existência, desanuviando males que nos apoquentam, recordemos, a propósito os dois primeiros poemas publicados pela Seara Nova nº. 927 em 19 de Maio de 1945, aos dezoito anos de idade.
Poema de amor
Eu sou aquele que canta e desespera;
Que chora e que sorri;
Que ama a humanidade e se esquece de si;
Que gosta do mar e das noites sem fim;
E que fica hesitante,
Sem nada saber fazer,
Quando tem dois caminhos a escolher…
Mas, meu amor, se estou perto de ti
Eu sou simplesmente
Aquele que canta e que sorri…
Prece
Ao Vítor Manuel Parracho
“…Je me surprends à t`adresser la parole
Mon Dieu, qui ne sais pas encore si tu existes. »
Jules Supervielle
Àqueles que sofrem e já nada esperam,
Àqueles que choram e a quem nunca consolam,
Àqueles que cantam e ninguém compreende,
Vai junto deles, Senhor…
Vai… e diz-lhes que és esperança, e abrigo e compreensão
Vai, Senhor
E, depois de cumprido este desígnio
Vem para junto de mim
E faz que eu creia em ti!