É um projeto pioneiro, comporta abordagens singularíssimas na peugada das modernas correntes historiográficas, onde nada se aproxima, nem de perto nem de longe, das doutrinações de Fortunato de Almeida, Damião Peres e mesmo Oliveira Marques, que foram mestres de gerações (a nota dissonante era Vitorino Magalhães Godinho). Os diretores de uma obra que é um verdadeiro sobressalto no modo de ver a nossa relação com o país e o mundo (Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva), no prefácio dão um esclarecimento claro: “A história era conhecida de forma bipolar, dualista: existíamos nós e os outros. E os outros eram muitas vezes visto de modo maniqueísta: os povos amigos e os povos inimigos. Nos casos mais extremos, a história nacional, ou até a local, era concebida e ensinada como uma realidade quase autónoma em relação à história do mundo, com uma vida imaginariamente separada, isto é, que podia ser explicada como se nada mais existisse ou, existindo, como se essa existência não fosse determinante para a entender”. Pertenço à geração que aprendeu com os compêndios de António G. Mattoso, parecia que a história era linear, havia uma estranhíssima antiguidade oriental em que se sobrepunham povos e civilizações, uma verdadeira cavalgada que passava por Grécia e Roma, umas tais invasões bárbaras que eram culturalmente contrariadas por uns monges que não só preservavam mensagem cristã como resgatavam o melhor da cultura greco-romana (sabe-se hoje que o fanatismo religioso destes séculos levou à destruição de textos de incalculável valor), havia depois a Idade Média, que parecia singrar automaticamente para uma Idade Moderna… e a partir da cultura greco-romana a visão histórica era literalmente eurocêntrica com algumas adjacências que podiam ser a China, as culturas Maia e Azteca. História Global de Portugal é um novo alento para entender a dinâmica a que os habitantes deste espaço foram sujeitos. O modo de ver a história mudou, como os mesmos diretores observam: “Despontou nas duas últimas décadas, em vários países, uma reflexão acutilante sobre a história global, que impõe a necessidade de repensar o passado. Foi esta reflexão epistemológica que fez emergir, no campo historiográfico, novas histórias globais de várias nações. Assim, em 2017, vieram a lume as histórias mundiais da França e da Itália, a que se seguiram, em 2018, perspetivas similares na Holanda e na Espanha. Também na América já tinham sido publicados livros que abordavam a história global dos Estados Unidos”. Obra, portanto, de vanguarda, mas manda a seriedade que se indique a inspiração, a fonte original.
E pôs-se o projeto em marcha que dá este tomo de mais de 650 páginas, comporta-se 93 textos agrupados em cinco blocos cronológicos, cada um deles com um coordenador científico. “Os textos partem de um acontecimento, criteriosamente escolhido pelos diretores da obra e pelos responsáveis científicos de cada uma das épocas, que é lido à luz dos preceitos acima expostos. Esta História Global de Portugal pretende oferecer um conhecimento crítico, mediante um exercício de síntese analítica, que permita produzir uma visão de conjunto da história que, tendo tido a sua génese no território português ou por ele tendo passado, estimulou os processos de encontro e de desencontro do mundo global hodierno: História Global de Portugal, Temas e Debates, 2020.
E assim temos uma Pré-História e uma Proto-História onde são evidentes as analogias com tudo o que se passou pela Europa, percebe-se o que há de global na chamada cultura campaniforme (recipiente em campânula invertida e com decoração), cuja produção ocorreu entre 2700 e 1800 a.C. e que vamos encontrar na Europa Ocidental e Central, como a Ciência permite comprovar. Aqui arribaram Fenícios, Romanos que impuseram a Hispânia num grande mercado correspondente às dimensões do Império de Roma, que nos deixaram formulação jurídica e a base linguística, a emergência das cidades, relatos como os de Estrabão e de Plínio, O Velho; Suevos, Alanos e Vândalos, no início do século V entraram na Hispânia e chegaram à Lusitânia e à Galécia, deixaram dedadas civilizacionais e culturais. E assim se arranca para uma Idade Média globalizante, onde não faltou confronto e interação com o Islão, onde a nossa língua foi evoluindo, onde se assimilou do Românico ao Gótico, uma estética marcadamente europeia, chegaram ordens militares e religiosas, e das primeiras, a Ordem do Templo iria assumir um papel primordial na formação do território e até, com o nome da Ordem de Cristo, no processo expansionista; nasce uma literatura incipiente, Portugal entra num sistema universitário que é francamente global e definidas as suas fronteiras pelo Tratado de Alcanices, assegurada a independência por Aljubarrota, Portugal procura ligar-se a novos mundos, descobre as suas ilhas atlânticas, ruma ao norte de África, começam as navegações a contornar a sua costa ocidental, é tudo terra incógnita e mar ignoto, mas depois do Bojador lança-se uma âncora na costa da Guiné, cria-se a fortaleza de Arguim, o conhecimento científico avança a passos largos, desde a arte de marear e da cartografia até aos conhecimentos das drogas que curam, os missionários repartem-se pelos continentes, Camões escreve toda esta épica, e dá-se um refluxo, a despeito da manutenção da dinâmica global, a União Ibérica.
Contemporâneo da Restauração é o Tratado de Vestefália, onde se tentou um regime de relações assente na igualdade político-jurídica entre todos os Estados. Acontecera que a nossa geografia de circulação das pessoas conhecera uma grande modificação depois de 1640, as grandes potências europeias mantiveram o seu estatuto, Portugal procurou refazer o seu império na Ásia e no Brasil.
As correntes artísticas mantiveram porosas, Portugal não escapou nem ao maneirismo nem ao barroco e pode-se falar do Palácio de Mafra como uma visão global do barroco, há para ali uma magnificência inultrapassável. E sempre a demonstrar que a História de Portugal não somos só nós e depois os outros, este projeto audacioso da História Global de Portugal recorda-nos o papel da Maçonaria, as tentativas de modernidade arquitetónica de que a reconstrução de Lisboa no projeto do Marquês de Pombal é o caso de maior evidência. O período napoleónico introduz uma fratura num regime absolutista, a Corte portuguesa desloca-se para o Rio, tudo será diferente a partir daí, quer para o Brasil quer para Portugal. Haverá resistência ao liberalismo, e Portugal conhecerá uma dolorosa guerra civil. Após meio século de significativos recuos, a Regeneração procura caminhos de progresso e desenvolvimento. Extinto o império brasileiro, confinada a presença portuguesa no Oriente a alguns vestígios, inicia-se o período do III Império em África, o mesmo continente onde se extinguirá a nossa história imperial. Mas seremos globais por outras vias: pelo Turismo, pelo Santuário de Fátima, e depois de uma guerra colonial que quase nos transformou num Estado pária, ingressámos no que é hoje a União Europeia onde, a despeito da onda eurocética, temos colhido enormes benefícios. E continuamos a toada migratória, e acolhemos gentes, hoje não é necessário ir à Rua Nova do Almada para conhecer o Portugal global, basta ir à freguesia de Arroios, ali vivem e labutam habitantes de 90 países de todos os continentes. Estamos visceralmente marcados pela tolerância e pelo espírito de acolhimento, ninguém nos subtrai à tentação global.
De leitura obrigatória, livro tão otimista como este em tempos de nebulosidade pandémica que atravessamos não se acredita que possa existir. Parabéns a quem foi ousado, apostou forte e ganhou.
(Mário Beja Santos)