O LIVRO DO DIA NTR
Escrito por Jorge Gaspar em Janeiro 5, 2021
“AVERNO” – LOUISE GLUCK
PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2020
OUTUBRO
1.
Voltou o Inverno, voltou o frio?
não escorregou no gelo, o Frank,
mas lá se curou? não foram plantadas as sementes da Primavera?
não acabou a noite?
não derreteu o gelo
e alagou as estreitas sarjetas?
não foi resgatado,
o meu corpo, não estava seguro?
não se formou a cicatriz, invisível
por cima da ferida?
não acabaram entretanto
o terror e o medo? não foi arado
e plantado o jardim das traseiras?
Lembro-me da sensação da terra, vermelha e densa,
em sulcos iguais — não foram plantadas as sementes?
não treparam as videiras pela parede a sul?
Não consigo ouvir a tua voz,
com os uivos do vento que assobia sobre o chão nu
e já não quero saber
que som ele faz
Quando fui silenciada? quando comecei a achar
inútil descrever esse som?
A forma como soa não muda o que é —
não acabou a noite? não estava segura,
a terra, quando foi plantada?
não plantámos as sementes?
não éramos necessários à terra?
e as videiras, não foram vindimadas?
2.
Verão após o fim do Verão,
bálsamo após a violência:
não me faz bem
que me tratem bem agora;
a violência mudou-me.
Amanhecer. Os montes baixos brilham,
cor de ocre e fogo, até os campos brilham.
Sei o que vejo; um sol que podia ser
o sol de Agosto, devolvendo
tudo o que foi tirado —
Ouves esta voz? É a voz da minha mente;
já não podes tocar no meu corpo.
Mudou uma vez, endureceu,
não lhe peças que responda de novo.
Um dia como um dia de Verão.
Invulgarmente calmo. As longas sombras dos áceres
quase roxas nos caminhos de gravilha.
E o calor, ao entardecer. A noite como uma noite de Verão.
Não me faz bem; a violência mudou-me.
O meu corpo arrefeceu como os campos despidos;
agora só existe a minha mente, desconfiada e atenta,
com a impressão de ser testada.
O sol volta a nascer como nascia no Verão;
abundância, bálsamo após a violência.
Bálsamo após a mudança das folhas, após a ceifa
e a aradura dos campos.
Diz-me que isto é o futuro
e não acreditarei em ti.
Diz-me que estou viva
e não acreditarei em ti.
3.
Tinha nevado. Lembro-me
de música saindo de uma janela aberta.
Vem a mim, dizia o mundo.
Não significa
que o fizesse com frases
mas era assim que eu intuía a beleza.
Aurora. Uma película de humidade
sobre cada ser vivo. Poças de luz fria
formavam-se nas sarjetas.
Eu esperava
na soleira,
por mais ridículo que pareça agora.
O que outros encontravam na arte,
encontrava eu na natureza. O que outros encontravam
no amor humano, encontrava eu na natureza.
Muito simples. Mas não havia nenhuma voz ali.
Louise Glück recebeu o Prémio Nobel da Literatura de 2020, “pela sua inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, tornou universal a existência individual”. O prémio da Academia Sueca reconhece um longo percurso de escrita de poesia e ensaio. Louise Elisabeth Glück nasceu a 22 de Abril de 1943 em Nova Iorque, filha de emigrantes húngaros, que se haviam fixado nos EUA algumas décadas antes. Estudou na Sarah Lawrence College e na Universidade de Columbia. Teve uma infância e adolescência difíceis, mas um contacto precoce com autores gregos e latinos permitiu-lhe acolher a herança clássica e escrever uma poesia que, através de imagens universais, aborda a fragilidade essencial dos seres humanos. É autora de mais de uma dezena de livros de poesia e de dois ensaios, Proofs and Theories (Prémio PEN/Martha Albrand) e American Originality.
Recebeu o National Book Critics Circle Award por The Triumph of Achilles e o Pulitzer por A Íris Selvagem. Recebeu também o Bobbitt Prize, concedido pela Biblioteca do Congresso, o William Carlos Williams Award da Poetry Society of America e o Ambassador Book Award da English-Speaking Union. Louise Glück foi poeta laureada em 2003 e 2004, membro da Academia Americana de Artes e Letras e escritora residente da Rosenkranz na Universidade de Yale.Vive em Cambridge, Massachusetts, nos EUA.