REVISTAS LITERÁRIAS. A PAIXÃO PELA PALAVRA É QUEM MAIS ORDENA.
Escrito por Jorge Gaspar em Fevereiro 26, 2019
Em papel ou no online, as revistas literárias atravessam uma fase pujante: só no último par de anos pelo menos meia dúzia de projetos foram lançados, com enfoque nos novos criadores. Retrato de um meio onde a paixão pela palavra é quem mais ordena.
Há poucos anos, eram vistas como estando a caminho acelerado da extinção. Sem apoios ou muitos seguidores, pareciam um produto anacrónico numa era em que o digital, mais do que ditar leis, é a própria lei. Nos últimos anos, o cenário inverteu-se de forma surpreendente: pelo menos meia dúzia de revistas literárias iniciaram atividade, dispostas a contrariar a sempre falada efemeridade destes projetos.
Com uma vontade imensa em divulgar, partilhar e experimentar, revistas como a “Nervo”, “Tlön”, “Apócrifa”, “Grotta”, “Piolho” ou “A Casa do João”, entre muitas outras, têm sido um veículo de aproximação entre públicos com gostos muito específicos, seja a poesia, o ensaio ou a literatura para a infância.
“O que separa todas estas pequenas tribos que estão por detrás das revistas literárias já não são as afinidades ideológicas, mas sim estéticas”, observa Eduardo Sousa, gerente da Letra Livre, um dos últimos bastiões das livrarias independentes, que faz questão de consagrar um espaço destinado a estas publicações.
Sem capacidade de terem distribuição própria, chegam aos pontos de venda (uma ínfima parte dos totais) graças à carolice dos seus membros, que as fazem chegar às livrarias a expensas próprias ou entregando-as em mão.
“A algumas delas perdemos-lhes simplesmente o rasto”, conta o livreiro, que lamenta o desaparecimento recente da “Nada”, de João Urbano, após mais de 20 números.
“Fenómeno benigno”
O escritor Nuno Costa Santos, que dirige há pouco mais de dois anos a “Grotta”, fala do improvável novo fôlego das publicações independentes como “um fenómeno benigno, com o seu quê de misterioso, numa era da dispersão e informação veloz”.
“Estão a surgir como cogumelos”, assinala o diretor do festival Arquipélago de Escritores, que destaca a emergência de vozes: “Há pluralismo, o que me parece particularmente interessante. Não são sempre os mesmos nomes que aparecem, mas sim novos autores que encontram nesse circuito alguma visibilidade”.
João Pedro Azul, da “Flanzine”, confirma: “Para nós, tanto nos importa um autor com o Prémio Saramago como aquele que nos envia um email a perguntar como pode participar”.
À primeira vista estranha, a preferência pelo papel – sobretudo porque à frente destas revistas estão, na maioria dos casos, jovens – é sintetizada sem dificuldades por Maria F. Roldão, editora da “Nervo”: “Nada há de mais precioso do que o objeto de papel. Especialmente quando nos reportamos à poesia. O papel é também em si mesmo poético – o cheiro, o toque, a sua temperatura… convoca, praticamente, todos os nossos sentidos. Por outro lado, o objeto de papel – neste caso a revista – , é também o prolongamento do processo de escrita do poeta. Raros são os poetas que não escrevem primeiro no papel, nos seus cadernos, blocos ou folhas soltas, passando só depois para o processamento digital”.
Fundadora e editora da “Tlön”, Luiza Nilo Nunes atribui ao papel o poder de “rasgar o véu da efemeridade” que é a Internet, uma “teia psicadélica onde brilham poetas, escritores ilustradores ou fotógrafos”. “Há um desejo de reunir estes textos e imagens, de os reter num objeto concreto, dando-lhes um rosto”, admite a editora.
“Teia de cumplicidades”
Os projetos mais sólidos acabam por criar autênticas comunidades. Uma plêiade de autores e artistas, que tanto se pode expressar com um poema como com uma ilustração. Mesmo que, na grande maioria dos casos, nem se conheçam pessoalmente, partilham ideias e estéticas que atraem um público fiel.
Para solidificar estes movimentos, a “Flanzine” promoveu no ano passado, em Vila do Conde, uma mostra de edições independentes, que reuniu editores, autores, performers e livreiros. O convívio estende-se também aos lançamentos de cada número, razão pela qual o editor João Azul defende que a “Flanzine” “é um pudim, mas também uma enorme teia de cumplicidades e, perdoem-me a blasfémia, de afetos”.
A Internet é uma aliada poderosa destas publicações. Não só por ser um instrumento privilegiado de divulgação (seja com um site próprio ou através da presença nas redes sociais), mas pela facilidade de colocar em contacto criadores muito diversos. Foi o que aconteceu em 2012 com João Pedro Azul, quando decidiu levar por diante este projeto. “A Internet é a rua da minha infância, elevada ao infinito”, explica o editor, que estima em 95% a percentagem de autores convidados a participar via Facebook.
O aparecimento destas revistas acontece, por vezes, num contexto universitário, como foi o caso da “Tlön”, que surgiu no âmbito de uma tese de tese de mestrado de Luiza Nilo Nunes. Mas o desejo de “mostrá-la a toda a gente, impedindo-a de ser somente um projeto de finalização do curso”, como recorda Luiza Nilo Nunes, acaba quase sempre por falar mais alto.
“A poesia é já um lucro”
Para que as revistas tenham voltado a tornar-se um meio de comunicação atrativo contribuíram, além da “Flanzine”, projetos como a “Piolho” ou “Estúpida”. Em comum entre ambas está o nome de António da Silva Oliveira, fundador das Edições Mortas e um decano da edição independente.
No atual surto de publicações, o poeta e editor vê a vantagem de “desmistificar-se o academismo, que se vê assaltado na sua inteligência”.
Se as publicações primam pela diversidade, é ao género poético que se dedica a maioria. Na “Apócrifa”, os novos poetas estão em larga maioria, enquanto a “Eufeme” destaca também autores alternativos ou esquecidos. Esta última, dirigida por Sérgio Ninguém, não esconde o objetivo de tentar atenuar aquilo que considera serem os graves desequilíbrios do meio editorial português. Nesse propósito de divulgação de que a “Eufeme” não abdica tanto cabem novos autores, como “poetas já esquecidos pelo mainstream”, autores reconhecidos mas também estrangeiros, muitos deles inéditos em Portugal, como David Lehman, Jane Hirshfield, Steve Klepetar ou Arvind Krishna Mehrotra.
“Somos um magazine de poesia que privilegia a isenção e a independência, sobrevivendo sem publicidade, sem subsídios ou fundos, unicamente pelo prazer de editar poesia; e mesmo que isso traga algum dissabor financeiro: a poesia é já um lucro!”, explica o editor.
Por territórios parecidos navega a “Nervo”. “Sem elitismos ou qualquer forma de discriminação aos poetas que se harmonizem com a nossa linha editorial”, Maria F. Roldão, editora do projeto, garante que “a nossa missão é unicamente a poesia e a sua ampla difusão”.
Em contraciclo com o predomínio poético, a “Casa do João” é uma revista trimestral gratuita dirigida a crianças mas também educadores. Essa “abordagem pedagógica” pretende transmitir diretrizes de leitura aos mais novos, contribuindo para que as crianças “assimilem de forma entusiasmada os acontecimentos e personalidades (escritores, ilustradores, cantores…) que pintam o seu mundo”, descreve João Manuel Ribeiro, editor e escritor.
Por muitas divergências estéticas que tenham, todas integram um circuito independente muito próprio, do qual fazem parte espaços como a Utopia, Flâneur e Gato Vadio (no Porto) ou a vimaranense Snob, além de eventos como oZinefest Pt. ou as feiras Tijuana e Deriva de Arte Impressa.
Apesar da dinâmica, o caminho a percorrer ainda é longo. Faltam, como aponta a editora da “Tlön”, “eventos que apontem aos mais desatentos que as publicações literárias não estão disponíveis apenas nas grandes superfícies comerciais”.
ALGUNS PROJETOS
“Grotta”
A geografia e a identidade açorianas estão bem presentes no seu ADN, mas a “Grotta” rejeita qualquer confinamento geográfico e não só. Nuno Costa Santos, diretor da publicação, diz que o objetivo passa por “dar continuidade de forma contemporânea” à longuíssima tradição literária do arquipélago.
“Somos também um lugar de experimentação, arriscando textos de novos autores”, realça.
Em cada número, há um autor açoriano em destaque (no mais recente é Emanuel Jorge Botelho), além de um enfoque em regiões que “resistem à massificação”, seja a Galiza ou a Irlanda.
“Eufeme”
Para suprir “a falta de revistas de poesia”, o editor e poeta Sérgio Ninguém avançou há dois anos e meio para este projeto que procura fazer da independência a sua característica maior.
“Existiam algumas revistas mas poucas, e as grandes revistas literárias são autênticos panfletos de venda”, sentencia.
“Arriscar, descobrir e inovar” são as três palavras-chave para a “Eufeme”, que procura contribuir para o ressurgimento de movimentos independentes como a &etc., de Vítor Silva Tavares. Só com esta aposta, defende o editor, é possível quebrar e inverter uma tendência em que “os poucos poetas novos” são consequência do desinvestimento editorial. “É necessário haver sangue novo, coisas novas. Dar oportunidades, ler, ouvir, e não ficar à espera unicamente de livros que dão lucro financeiro”, acusa.
“Nervo”
Nasceu há apenas um ano com o objetivo de dar voz à produção poética emergente. Com periodicidade quadrimestral, coloca em cada número “as artes plásticas em diálogo com os poetas”.
A editora, Maria F. Roldão, sustenta que a “revista publica, sobretudo, inéditos e pretende representar várias linguagens estéticas e diferentes gerações de poetas”.
A multiplicidade de propostas é uma das características principais que aponta ao segmento. No polo contrário, a editora destaca “a periodicidade muito irregular”, cuja consequência mais notória é a de “não fidelizar os leitores”.
“Tlön”
Dirigida por Luiza Nilo Nunes, a “Tlön” é um espaço de encontro de poetas e artistas de várias gerações que têm em comum “a singularidade dos seus percursos distintos e da sua fragmentação”.
Essa reunião “de vozes dispersas” é o ADN literário de uma publicação que elege Jorge Luis Borges como seu patrono.
Como editora, Luiza Nilo Nunes seleciona o material, faz a revisão dos textos, a paginação e o design. Tudo começa, porém, com um poema, espécie de iluminação para o que se segue. “O quarto número, sob o tópico do Espelho, será lançado em breve”, anuncia a responsável da publicação.
“Apócrifa”
Surgiu há exatamente três anos, impulsionada pela paixão de um grupo de jovens autores. O foco geracional é uma das marcas desta revista literária, dirigida por Vasco Macedo, que afirma distinguir-se das demais por “um certo posicionamento estético e pelo seu critério mais tosco”.
“A Casa do João”
A promoção da leitura, mas também das artes em geral, é o eixo maior desta publicação dirigida por João Manuel Ribeiro. Além da edição impressa, o projeto conta com um site, rádio e TV.
“É um caminho paulatino, com os pés bem assentes na terra e que nos orgulha”, reforça o editor e escritor, que faz questão de salientar o caráter gratuito da publicação.
“A abordagem genuína” é, para o responsável, o que torna o projeto verdadeiramente diferenciador.
“Piolho” / “Estúpida”
A caminho do número 27, a “Piolho” desafia a muito propalada efemeridade destas publicações. Com um formato e um conceito diferente – virado para o ensaio e sob a forma de revista -, a “Estúpida” já atingiu também a maioridade.
Na coordenação de ambas as publicações encontramos A. Dasilva O., figura de relevo do movimento literário de contracultura e resistência.
Escudado nos 40 anos ininterruptos de entrega à causa, o poeta e editor regista com agrado esse dinamismo hoje existente, mesmo que o seu grande objetivo seja o de meramente “ocupar um vazio”.
“Flanzine”
Há fanzines e há a “Flanzine”, publicação criada em 2012 por João Pedro Azul. “Num gesto suicida, lancei o desafio a um amigo do Facebook – Luis Olival -, de criar um fanzine. Ele acalentou a ideia com entusiasmo, e isso foi o empurrão que precisava para me lançar neste abismo. Eu que apenas tinha tido a experiência, num longínquo 8º ano, de criar um jornal com os colegas de turma, na escola. Embora o Luis imaginasse a coisa apenas online, eu só pensava no papel”, recorda o fundador.
Nos anos seguintes, associou-se ao projeto muita “gente de áreas bem diversas: cinema, teatro, literatura, ilustração, música”.
O próximo número, o 19, intitula-se “Obscenum” e sai em breve.
(via: jn)