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“TROPEL” MANUEL JORGE MARMELO

Escrito por em Janeiro 22, 2021

O LIVRO DO DIA NTR

“Escrevo hoje de uma forma que dói mais porque o mundo só piorou”

Fica o leitor advertido de que esta ficção é completamente alheia à realidade. Tudo nela é falso, desconcertante, fictício e quase nada verídico. A viagem que aqui se empreende ao âmago da pungente metáfora que anima o Clube dos Caçadores de Székely é, todavia, inspirada em factos absolutamente reais.
Atanas Viktor, o desamparado adolescente herdeiro de uma longa linhagem de caçadores impiedosos, é a personagem central desta incursão a um tempo de ódio e de uma história apartada do mundo, marginal e contada a partir de um lugar ermo, espantoso e medonho que só existe na literatura — mas cada vez mais próximo da soleira da nossa porta.

Atanas Viktor, personagem central desta incursão a um tempo de ódio, é filho de Hirónimo Viktor, o melhor caçador da comuna de Székely, tal como o seu pai e o seu avô já haviam sido. Acompanhados pelos seus camaradas do Clube de Caçadores, os Viktor patrulham as florestas da sua pátria. O jovem Atanas carrega a antiquada carabina Mosin-Nagant do único mestre de caça que conheceu e segue as pegadas de seu pai, predador que não conhece o medo.

Não procuram as espécies cinegéticas comuns: veados, gamos, cabritos-monteses ou javalis. Procuram a espécie mais desejada e mais indefesa: os estrangeiros, refugiados que ousam atravessar o território. “Delinquentes, sodomitas, traficantes de droga, ladrões de supermercado, ladrões de galinhas e potenciais terroristas”, os otomanos são a praga invasora que põe em perigo os valores espirituais, morais e a soberania da grande nação.

Os caçadores e a sua ratoeira na grande vedação que protege o país são a última barreira e o garante da integridade de Székely. Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar, escreveu o pastor Martin Niemöller, em palavras que também são recordadas por Manuel Jorge Marmelo na abertura deste Tropel e que recordam o leitor das consequências da indiferença perante as narrativas do poder e da autoridade.

Um romance cru, bruto e um retrato possível de um tempo e espaço e das negras tensões que se propagam como um vírus e se estendem desde o cérebro político da União Europeia aos campos de acolhimento de Moria, na ilha de Lesbos. Um regresso poderoso de um grande ficcionista, vencedor, em 2014, do Prémio Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas com Uma Mentira Mil Vezes Repetida. 

MANUEL JORGE MARMELO

Nasceu em 1971, na cidade do Porto.
Estreou-se na literatura em 1996 e publicou, de então para cá, em Portugal e não só, romances, crónicas, contos e livros infantis, destacando-se os romances Uma Mentira Mil Vezes Repetida, editado em 2011, que conquistou o prestigiado Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas 2014; Macaco Infinito, de 2016; Somos Todos Um Bocado Ciganos, de 2012; e o livro O Silêncio de um Homem Só, distinguido em 2005 com o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco. O romance O Tempo Morto É Um Bom Lugar, de 2014, foi um dos três finalistas do Livro do Ano da Time Out Lisboa. 

CRÍTICAS

“Manuel Jorge Marmelo é um mestre de contar histórias e tem-nos oferecido alguns dos melhores romances portugueses recentes. A ficção de hoje deve-lhe muito.”
Valter Hugo Mãe

“Manuel Jorge Marmelo escreve sobre personagens que se perdem ou desaparecem na poeira do mundo.”
José Mário Silva, suplemento Atual do Expresso

“Mestre do engano, artífice da ficção, encantador de leitores.”
Pedro Miguel Silva, Deus Me Livro

“Tropel”, este livro de Manuel Jorge Marmelo, encosta-nos à parede do horror quotidiano já ali ao virar da esquina. É um livro rude e desapiedado, um livro zangado com os dias, com o que nem sempre abre telejornais mas fica cosido à nossa consciência do mundo, mesmo se, dela, alijamos a carga. É um livro que não dá ao leitor folga para respirar.

Logo na primeira frase dita por Hirónimo Viktor, pai do narrador: “Se temes os ursos, não entres na floresta”. Este adágio de caçador não se refere, como nos é lembrado, a animais e árvores reais.

Hirónimo é o melhor caçador daquela comuna de um impreciso lugar da Europa que ergue, para se defender dos designados otomanos, muros invisíveis mas intransponíveis. Na verdade, Hirónimos e os outros membros do Clube dos Caçadores de Székely, guiados pelo cruel burgomestre vão pelos trilhos da floresta caçar refugiados.

Aquando da primeira batida aos otomanos, o pai do narrador disse-lhe: “Vê como eu mato e faz igual. Acabarás por aprender”.

O livro leva-nos, num dilacerante tropel, ao centro da clareira onde a desumanidade faz ponto de mira. Ao fim de algumas páginas iniciais, seguindo os trilhos deixados na própria escrita de Manuel Jorge Marmelo por indizíveis animais nocturnos, parei. Fiquei alguns minutos escutando a batida do coração e dei comigo a pensar se bateria do mesmo modo o coração de um leitor rendido ao discurso do ódio que percorre este tempo, num tropel insano.

O autor explica, em tempo útil, que este lugar (que os mapas nos revelam) só existe na literatura, embora “cada vez mais próximo da soleira da nossa porta”.

Por isso, este tropel sacode-nos, confrontando-nos, de um modo implacável, sem margem para meias tintas, com a visão do mundo dos caçadores de homens, os fiéis do burgomestre. Viras a página como se ligasses a televisão e visses a incursão de cinquenta ursos polares esfomeados no arquipélago russo de Nova Zembla, no Ártico. Empurrados pelas alterações climáticas, os ursos passaram a devorar golfinhos, antes de procurarem as lixeiras urbanas, semeando o pânico entre os três mil moradores da ilha. Têm, como a televisão os mostrou e o narrador os descreve, “um aspecto patusco e inofensivo”. Mas, observa o narrador, no fôlego seguinte de um tropel insano, “qualquer caçador sabe que não se pode confiar na inocência aparente dos ursos ou dos otomanos”.

Está acontecer. Cada vez mais próximo da soleira da nossa porta.

Cada vez mais perto do nosso ódio, do nosso medo, da nossa indiferença.

Ler este livro poderoso até ao fim faz do leitor que sou caçador de mim.

(Fernando Alves -TSF)


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