“TSUNAMI” ANA P. MADUREIRA
Escrito por Jorge Gaspar em Março 1, 2021
Em breve, na Temas Originais, “Tsunami”, de Ana P Madureira, 11.º título da série “Preto no Branco”.
Como no Prelúdio à obra, Alvaro Giesta refere: anda-se “desde a epiderme […] até ao mais profundo da pele descobrindo e saboreando o fértil húmus do sensual poético” desta obra.
A descobrir e a saborear.
porque sempre houve um azul
atrás do azul
onde no imaginário
as espadas se fazem de mar
esqueço o meu corpo
e de luz talhada
desconfiguro-me
até que só me restem as raizes
por onde me seivam
lábios e versos
êxodo
na rosa dos ventos
e o traço do impalpável
enquanto vagaroso
o vácuo trajecta
e no éter que me embala
feito da glória da proa
na despedida do barco
o poema
e os remos
(Ana P de Madureira)
força
a que inunda com ternura
a pele das águas
que em camadas de tule
dançam a verdade da espuma
e no borbulhar da incandescência
o rebento do respiro
serpenteando
no trilho da alvura
onde os corpos se auroram
oceano em mim
o que me galga as veias
e remoinha os brilhos
que no rubor se exalam
como notas do cio latejantes
dentro do meu suor
e dissipo-me sobre o teu corpo
enterrando lava e glória
(Ana P de Madureira)
Prelúdio
― um apontamento sobre o poema que brota em TSUNAMI
Assim eu andei, buscando “um azul/atrás do azul/onde no imaginário/(da poeta) as espadas se fazem de mar” esquecendo o tempo, na busca do corpo do poema, como o insecto em torno do resplendente néon confundindo-o com a luz da lua que o orienta na sua deslocação nocturna, à procura do veio para definir a cor do poema em TSUNAMI de Ana P de Madureira. E como Neruda andou «das (…) ancas aos (…) pés/(a) fazer a longa viagem» subindo e descendo «ásperos cumes/dum claro continente// procurando cego/e faminto o contorno/de vaso escaldante», assim eu andei, desde a epiderme (a flor da pele em primeiro contacto com o exterior, onde a autora sentiu o Verbo fluir como se vindo de corpo divinal ou fonte onírica, onde no sonho bebe a palavra alfa e ómega com que ergue o seu poema) até ao mais profundo estrato da pele descobrindo e saboreando o fértil húmus do sensual poético de Tsunami.
Já de obra anterior da autora em apreciação eu disse, o que aqui se repete relativo à beleza harmónica dos poemas: minimalistas, nos versos curtos, mas acutilantes que os enformam em corrida torrencial de palavras que casam entre si com engenhosa habilidade no entrelaçar de metáforas e sinestesias, pondo no poema ênfase, que são gritos de prazer. “as fragrâncias/onde o amor embebe/todas as especiarias/com o rubor do corpo” e “lume dos olhos/para que a carne se grite/ao afundar-se na outra”, e de dor também, quando “o céu sangra chumbo/nos instantes da batalha/e duelos de gritos/condensam as dores//no vergar dos ais/(e)no ardor dos olhos/(vergando-se)com o vermelho/violentado das mãos”, para escrever o poema.
Estados de alma, nus, como a alma nua e branca, arrancados à floresta dos segredos do sonho e do prazer, numa poesia virginal e pura de palavras plantadas com maestria, intimamente ligadas à visão da sua realidade poética que cria (no sentido da criatividade) tensões que se tornam força motriz para a prossecução do desejo pretendido ― o caminho por onde se ergue o/a mestre/a ante o ser humano comum. Neste jogo sensual de imagens ― é assim, daquilo que dela conheço, toda a linha poética de Ana P de Madureira ― usa um flirt dinâmico, ao mesmo tempo tornado “corpo e verso”, de versos curtos em jogos ligeiros de palavras sinestésicas unindo-se e separando-se numa simbiose perfeita de sons e cores, sábia atitude de quem conhece que se pode intuir sobre a verdade ontológica da poesia, dizendo “grande” embora escrevendo “pequeno”.
É neste colóquio de versos curtos que a sua poesia é “grande”, no sentido de brilhante, e rara num vasto panorama literário a que estamos habituados a digerir. Às vezes, quase visionária, diz-nos que o corpo-animal e a sensualidade poética são o mesmo grito ― comungam o mesmo pão e bebem, da mesma taça, o mesmo exilir fortificante, num repetir de ondas que se refrescam com o sabor do tempo e do saber dizer no imaginário poético. Reproduzem-se-lhe as palavras no vaivém das marés de imagens que lhe florescem na mente e frutificam a cada chegada à praia num sempre verso novo em refrescante poema.
Isso mesmo nos diz a poeta (poema 18): “existe em mim/não um rio/porque sou sem margens//não um mar/porque sou/sem continentes/não uma fonte/porque desconheço princípio/ou caminho que me finde//mas uma força de cascata/fecundada no prazer/em que me desfaço/e me te oferto”.
Ao leitor se deixa, daqui para a frente, o sabor de beber nas palavras de TSUNAMI o sal do saber com que a poeta nos conduz no tempo da sua vigem onírica e sensual. Porque um apontamento, ou prelúdio, que antecede uma obra, não é mais do que isso mesmo: um texto que surge antes do texto propriamente dito. Desta forma ao leitor digo, antes de fechar o livro ― o objecto que tem entre mãos ― avance e folheie. Não ligue ao que nesta nota se diz, mas dê importância apenas ao que a autora produziu para erguer a obra. Um prefácio ou prelúdio, ou qual-quer outro nome mais pomposo que se dê ao apontamento que ante-cede a obra, por mais interessante que ele seja não passa disso mesmo: um mero apêndice daquilo que realmente conta ― a obra que a autora dá ao leitor.
(Alvaro Giesta, poeta)